Questão do ser em Platão e Aristóteles [Boutot, 1987:34-35]

O fato de Platão e Aristóteles, cada um à sua maneira, terem colocado a questão do ser é, para Heidegger, pelo menos na altura de Sein und Zeit, sem dúvida a marca da grandeza e autenticidade do seu pensamento. A questão do ser, diz Heidegger, “inspirou a investigação de Platão e Aristóteles, mas morreu com eles, pelo menos como tema explícito de uma verdadeira investigação. O que estes dois pensadores conquistaram foi mantido, o melhor que puderam, através de inúmeros desvios e sobrecargas, mesmo na Lógica de Hegel. O que um esforço extremo do pensamento conseguiu um dia, em fragmentos e num primeiro assalto, arrancar aos fenómenos, há muito que se tornou comum” (GA2:3). O grande mérito de Platão e de Aristóteles é terem encontrado o problema do ser, ou mais precisamente, terem encontrado o ser como um problema, independentemente e mesmo antes das respostas que possam ou não ter encontrado (34). Desde eles, a questão do ser caiu no esquecimento. Os filósofos que lhes sucederam, incluindo Husserl, apesar do seu método fenomenológico e do seu desejo de regressar às “coisas em si”, limitaram-se a retomar, sem mais questionar, as determinações do ser que estes dois pensadores tinham descoberto. Vários preconceitos contribuíram de fato para manter a indiferença face à questão do ser. Heidegger denuncia três principais: a generalidade absoluta do ser (o ser é o conceito mais geral e, por isso, o mais vazio, é, como diz Hegel, “o imediato indeterminado”), a sua indefinibilidade, que pode ser deduzida da sua generalidade absoluta se for verdade que qualquer definição é feita pelo “gênero seguinte e pela diferença específica”, e, finalmente, a sua auto-evidência que, diz-se, nos dispensa de fazer mais perguntas sobre ele (GA2:4). Estes preconceitos, que têm “as suas raízes na própria ontologia antiga” (GA2:4), tiveram o efeito de legitimar a omissão da questão do ser, ao ponto de quem a levanta ser acusado de um “erro de método”. No entanto, uma exceção na história da filosofia deve ser destacada na pessoa de Kant que, na Crítica da Razão Pura, se religa diretamente com Aristóteles e Platão redescobrindo a inteligência do (τί τὸ ὄν->ti-to-on); antigo. “Kant”, diz Heidegger, ”entra imediatamente em discussão com Aristóteles e Platão. Pela primeira vez, a ontologia torna-se aqui um problema. Através dela, o edifício da metafísica tradicional sofre o seu primeiro e mais profundo abalo. A vaga evidência com que a metaphysica generalis tinha até então lidado com a ‘generalidade’ do ens commune dissipa-se” (GA3:12). Ao interrogar-se na Crítica da Razão Pura sobre as condições de possibilidade da experiência, que são ao mesmo tempo as condições de possibilidade dos objetos da experiência, Kant interroga-se sobre a estrutura ontológica do ser em geral (isto é, do objeto da experiência), reavivando assim, pela primeira vez na história da filosofia, a questão fundamental platónico-aristotélica: o que é o ser do ente?