Excertos de “Giovanni Reale e Dario Antiseri – História da Filosofia Vol I”
Como já tivemos ocasião de salientar, o mundo das Ideias pelo menos implicitamente, é constituído por uma multiplicidade, porquanto existem Ideias de todas as coisas: Ideias dos valores estéticos, Ideias de valores morais, Ideias das diversas realidades corpóreas, Ideias dos diversos entes geométricos e matemáticos etc. Tais Ideias não estão sujeitas a geração, sendo incorruptíveis, como o ser eleático.
A distinção entre dois planos do ser, o sensível e o inteligível, superava definitivamente a antítese entre Heráclito e Parmênides. O fluir perene, com todas as características a ele relativas, representa marca específica do ser sensível. Por outro lado, a imutabilidade e tudo quanto ela implica é propriedade do ser inteligível. Entretanto, ainda ficavam à espera de solução os dois grandes problemas que o eleatismo levantara e que os pluralistas não souberam resolver: como podem existir os seres “múltiplos” e como pode existir o “não-ser”?
Trata-se de dois problemas estreitamente conexos, como vimos, por terem ambos o mesmo fundamento. Para chegar à formulação da própria concepção das Ideias, concepção que implica uma multiplicidade estrutural, Platão devia enfrentar diretamente e resolver ambos os problemas de forma clara.
Já no diálogo que traz o título Parmênides, talvez o mais difícil de todos os seus diálogos, Platão submetia à crítica a concepção de unidade na forma como a entendiam os eleatas. O Um (ou a unidade) não pode ser pensado de modo absoluto, ou seja, de maneira a excluir toda multiplicidade: o um não existe sem os muitos como os muitos não existem sem o um.
Entretanto, é no diálogo Sofista que Platão apresenta a solução do problema da possibilidade da existência da multiplicidade, através da participação de personagem cuja fisionomia Platão não revela, denominando-a simbolicamente “o Forasteiro de Eleia”. Parmênides tem razão quando afirma não existir o não-ser entendido como negação absoluta do ser. Existe o não-ser como “diversidade” ou “alteridade”, coisa que os eleatas, entretanto, não compreenderam. Toda Ideia, para ser a Ideia que efetivamente é, deve ser diferente de todas as outras, ou seja, deve “não ser” todas as outras. Assim, toda Ideia possui certa dose de ser mas, ao mesmo tempo, um não-ser infinito no sentido de que, exatamente por ser a Ideia que é, deve não ser todas as outras, como vimos. Por fim, Parmênides é superado também pela admissão de um “repouso” e de um “movimento” ideais no mundo inteligível: cada Ideia, de modo imóvel, é ela mesma mas é, dinamicamente, um “movimento” ideal em direção às outras ou exclui a participação das outras.
Por tudo o que dissemos, fica evidente que Platão podia conceber o seu mundo das Ideias como um sistema hierarquicamente organizado e ordenado, no qual as Ideias inferiores implicam as superiores, numa ascensão contínua até à Ideia que ocupa o vértice da hierarquia, Ideia que condiciona todas as outras e não é condicionada por nenhuma delas (o incondicionado ou o absoluto).
Sobre esse princípio incondicionado, situado no vértice, Platão se pronunciou expressamente, embora de forma incompleta, em A República, afirmando tratar-se da Ideia do Bem. E do Bem afirmou que não apenas constitui o fundamento que torna as Ideias cognoscíveis e a mente capaz de conhecer, mas que verdadeiramente “produz o ser e a substância” e que “o Bem não é substância ou essência, mas situase acima da substância, transcendendo-a em dignidade hierárquica e em poder”. Sobre esse princípio incondicionado e absoluto, situado além do ser e do qual derivam todas as Ideias, Platão nada mais escreveu nos diálogos, reservando o que tinha para dizer às suas exposições orais, ou seja, às lições que possuíam exatamente o título Sobre o Bem. Considerou-se, no passado, que essas lições constituíam a fase final do pensamento platônico. Entretanto, os mais recentes e aprofundados estudos demonstraram que elas eram ministradas paralelamente à elaboração dos diálogos, pelo menos a partir da época da redação da República. Quanto à razão pela qual Platão não quis escrever sobre essas coisas “últimas e supremas”, já discorremos anteriormente (cf. 1.3.). A partir das referências dos discípulos a essas lições, podemos inferir as seguintes considerações:
O princípio supremo, que na República recebe a denominação de “Bem”, nas doutrinas não escritas se chama “Um”. A diferença, porém, é perfeitamente explicável porquanto, como logo veremos, o Um sintetiza em si o Bem, pois tudo quanto o Um produz é bem (o bem é o aspecto funcional do Um, como argutamente observou certo intérprete). Ao Um se contrapunha um segundo princípio, igualmente originário mas de ordem inferior, entendido como princípio indeterminado e ilimitado e como princípio de multiplicidade. Denominava-se tal princípio Díade ou Dualidade de grande-e-pequeno enquanto princípio que tende, ao mesmo tempo, para a infinita grandeza e para a infinita pequenez, sendo por isso denominado também de Dualidade indefinida (ou indeterminada, ilimitada).
Da colaboração desses dois princípios originários é que procede a totalidade da Ideia. O Um age sobre a multiplicidade ilimitada como princípio limitante e determinante, ou seja, como princípio formal (como princípio que dá enquanto determina e delimita), ao passo que o princípio da multiplicidade ilimitada funciona como substrato (como matéria inteligível, se quisermos dizê-lo com terminologia posterior). Consequentemente, assim como todas as outras, cada Ideia surge como resultado de uma “mistura” dos dois princípios (delimitação de um ilimitado). Além disso, o Um, enquanto de-limita, se manifesta como Bem, porquanto a delimitação do ilimitado, que se revela como uma forma de unidade na multiplicidade, é “essência”, “ordem”, perfeição e valor. Assim, o Um: a) é princípio de ser (porquanto, como vimos, o ser, ou seja, a essência, a substância, a Ideia, nasce precisamente da delimitação do ilimitado); b) é princípio de verdade e cognoscibilidade, porquanto só aquilo que é determinado é inteligível e cognoscível; c) é princípio de valor, porque a delimitação implica, como vimos, ordem e perfeição, ou seja, positividade.
Finalmente, “porquanto é possível concluir a partir de uma série de indícios, Platão definiu a unidade como ‘medida’ e, mais precisamente, como ‘medida absolutamente exata’” (H. Kramer).
Essa teoria, atestada especialmente por Aristóteles e seus comentadores, se apresenta largamente confirmada pelo diálogo Filebo, revelando clara inspiração pitagórica. Ela traduz, em termos metafísicos, a característica mais peculiar do espírito grego que, nos seus mais variados aspectos, está sempre à procura de como estabelecer um limite para aquilo que é ilimitado, e de como encontrar a ordem e a justa medida.
Duas considerações essenciais ainda se impõem para a plena compreensão da estrutura do mundo das Ideias de Platão.
A “geração” das Ideias a partir dos princípios (Um e Díade) “não deve ser entendida como processo de caráter temporal, mas como metáfora destinada a ilustrar uma análise de estrutura ontológica. Tal metáfora objetiva tornar compreensível ao conhecimento, que se realiza de forma discursiva, a ordem do ser, que se realiza de modo evolutivo e atemporal” (H. Kramer). Consequentemente, quando se diz que foram geradas “antes” determinadas Ideias e “depois” outras Ideias, tal afirmação não pretende indicar a existência de uma sucessão cronológica, mas de uma graduação hierárquica, isto é, de uma “anterioridade” e uma “posterioridade” ontológicas. Nesse sentido, logo após os princípios surgem as Ideias mais gerais, como, por exemplo, as cinco Ideias supremas mencionadas no diálogo O Sofista (Ser, Repouso, Movimento, Identidade, Diversidade) e outras Ideias semelhantes a essas (por exemplo: Igualdade, Desigualdade, Semelhança, Dessemelhança etc). Talvez Platão possa ter colocado no mesmo plano os assim chamados Números Ideais ou Ideias-Números, que representam arquétipos ideais, que não devem ser confundidos com os números matemáticos. Tais Ideias são hierarquicamente superiores às restantes, porquanto estas últimas delas participam (e, por conseguinte, as implicam) e não vice-versa (por exemplo, a Ideia de homem implica identidade e igualdade do homem consigo mesmo, diferença e desigualdade em relação às outras Ideias; entretanto nenhuma das Ideias supremas mencionadas implica a Ideia de homem). Análoga deve ser a relação das Ideias-números com as demais Ideias: Platão deve ter considerado algumas Ideias como monádicas, outras como diádicas, outras ainda como triádicas e assim sucessivamente, quer porque relacionáveis ao um, ao dois, ao três e assim por diante, quer em virtude de sua configuração interna, quer ainda pelo tipo de relação que estabelecem com outras Ideias. Sobre esse ponto, entretanto, nos achamos muito mal informados.
Os entes matemáticos, isto é, os números e figuras geométricas encontram-se no degrau mais baixo da hierarquia do mundo inteligível. Diferentemente dos números ideais, esses entes são múltiplos (existem muitos “um”, muitos “dois” etc; muitos triângulos etc), embora sejam inteligíveis.
Mais tarde, esse mundo complexo da realidade inteligível pensado por Platão foi denominado”cosmos noético” (por Fílon de Alexandria e por Plotino). De fato, esse mundo abrange a totalidade do ser inteligível, isto é, do pensável em todas as suas complexas relações. Era exatamente esse mundo que Platão, no Fedro, denominava de “lugar Hiperurânio” e também “Planície da verdade”, para onde partem as almas a fim de exercer a atividade contemplativa.