Excertos de “Giovanni Reale e Dario Antiseri – História da Filosofia Vol I”
Existe um ponto fundamental da filosofia platônica de cuja formulação dependem por inteiro a nova disposição de todos os problemas da filosofia e o novo clima espiritual em cujo interior se colocam tais problemas e suas respectivas soluções, como já observamos. Esse ponto fundamental consiste na descoberta da existência de uma realidade supra-sensível, ou seja, uma dimensão suprafísica do ser (de um gênero de ser não-físico), existência essa que a filosofia da physis nem mesmo vislumbrara. Todos os naturalistas haviam tentado explicar os fenômenos recorrendo a causas de caráter físico e mecânico (água, ar, terra, fogo, calor, frio, condensação, rarefação etc).
Platão observa que o próprio Anaxágoras, não obstante tenha atinado com a necessidade de introduzir uma Inteligência universal para conseguir explicar as coisas, não soube explorar essa sua intuição, continuando a atribuir peso preponderante às causas físicas tradicionais. Entretanto—e esse é o problema fundamental —, será que as causas de caráter físico e mecânico representam as “verdadeiras causas” ou, ao contrário, constituem simples “concausas”, ou seja, causas a serviço de causas ulteriores e mais elevadas? A causa daquilo que é físico e mecânico não será, talvez, algo não-físico e não-mecânico?
Para encontrar resposta a esses problemas, Platão empreendeu aquilo que ele simbolicamente denomina a “segunda navegação”: na antiga linguagem dos homens do mar, “segunda navegação” se dizia daquela que se realizava quando, cessado o vento e não funcionando mais as velas, se recorria aos remos. Na imagem platônica, a primeira navegação simbolizava o percurso da filosofia realizado sob o impulso do vento da filosofia naturalista. A “segunda navegação” representa, ao contrário, a contribuição pessoal de Platão, a navegação realizada sob o impulso de suas próprias forças, ou seja, em linguagem não metafórica, sua elaboração pessoal. A primeira navegação se revelara fundamentalmente fora de rota, considerado que os filósofos pré-socráticos não conseguiram explicar o sensível através do próprio sensível. Já a “segunda navegação” encontra a nova rota quando conduz à descoberta do supra-sensível, ou seja, do ser inteligível. Na primeira navegação, o filósofo ainda permanece prisioneiro dos sentidos e do sensível, enquanto que, na “segunda navegação”, Platão tenta a libertação radical dos sentidos e do sensível e um deslocamento decidido para o plano do raciocínio puro e daquilo que é captável pelo intelecto e pela mente na pureza de sua atividade específica. Podemos ler no Fédon: “Tive medo de que minha alma se tornasse completamente cega olhando as coisas com os olhos e buscando captá-las com cada um dos outros sentidos. Por isso, achei necessário refugiar-me nos raciocínios (logoi) para neles considerar a veracidade das coisas (…). Seja como for, encaminhei-me nessa direção e, a cada vez, tomando por base o raciocínio que me parece mais sólido, julgo verdadeiro aquilo que com ele concorda, tanto em relação às causas como no que se refere a outras coisas, considerando como não verdadeiro aquilo que com ele não concorda.”
O sentido dessa “segunda navegação” fica particularmente claro nos exemplos apresentados pelo próprio Platão.
Desejamos explicar por que certa coisa é bela? Ora, para explicar esse “porquê” o naturalista invocaria elementos puramente físicos, como a cor, a figura e outros elementos desse tipo. Entretanto — diz Platão — não são essas as “verdadeiras causas”, mas, ao contrário, apenas meios ou “con-causas”. Impõe-se, portanto, postular a existência de uma causa ulterior, que, para constituir verdadeira causa, deverá ser algo não sensível mas inteligível. Essa causa é a Ideia ou “forma” pura do Belo em si, a qual, através da sua participação ou presença ou, de qualquer modo, através de certa relação determinante, faz com que as coisas empíricas sejam belas, isto é, se realizem segundo determinada forma, cor e proporção como convém e precisamente como devem ser para que possam ser belas.
E eis um segundo exemplo, não menos eloquente.
Sócrates se encontra preso, aguardando sua condenação. Por que está preso? A explicação naturalista-mecanicista não tem condições de dizer senão o seguinte: porque Sócrates possui um corpo composto de ossos e nervos, músculos e articulações que, com o afrouxamento e o retesamento dos nervos, podem mover e flexionar os membros: por essa razão Sócrates teria movido e flexionado as pernas, ter-se-ia dirigido ao cárcere e lá se encontraria até o momento. Ora, qualquer pessoa percebe a inadequação desse tipo de explicação: ela não oferece o verdadeiro “porquê”, a razão pela qual Sócrates está preso, explicando apenas qual o meio ou instrumento de que Sócrates se serviu para se dirigir ao cárcere e lá permanecer com seu corpo. A verdadeira causa pela qual Sócrates foi para o cárcere e nele se encontra não é de ordem mecânica e material, mas de ordem superior, representando um valor espiritual e moral: ele decidiu acatar o veredito dos juízes e submeter-se à lei de Atenas, acreditando que isso representasse para ele o bem e o conveniente. E, em consequência dessa escolha de caráter moral e espiritual, ele, em seguida, moveu os músculos e as pernas e se dirigiu para o cárcere, onde se deixou ficar prisioneiro.
Os exemplos poderiam se multiplicar à vontade. Platão chega até a dizer expressamente que o que ele afirma vale “para todas as coisas”. Isso significa que toda e qualquer coisa física existente supõe uma causa suprema e última, que não é de caráter “físico” mas sim, como se dirá com uma expressão cunhada posteriormente, de caráter “metafísico”.
A “segunda navegação”, portanto, leva ao reconhecimento da existência de dois planos do ser: um, fenomênico e visível; outro, invisível e meta-fenomênico, captável apenas com a mente e, por conseguinte, puramente inteligível. Eis o texto em que Platão afirma isso de modo absolutamente claro:
“— E não é verdade, talvez, que enquanto podes ver, tocar e perceber com os outros sentidos corpóreos essas coisas mutáveis, já aquelas que permanecem sempre idênticas, ao contrário, por nenhum outro meio podem ser captadas senão através do raciocínio puro e da mente, porquanto são coisas invisíveis que não podem ser colhidas pela vista?
— O que dizes é absolutamente verdade — respondi.
— Admitamos, portanto, se quiseres duas espécies de seres: uma visível e outra invisível — acrescentou ele.
— Admitamos — respondi.
— E que o invisível permaneça sempre na mesma condição e que o visível não permaneça jamais na mesma condição.
— Admitamos isso também — disse.”
Podemos afirmar sem dúvidas que a “segunda” navegação platônica constitui uma conquista que assinala, ao mesmo tempo, a fundação e a etapa mais importante da história da metafísica. De fato, todo o pensamento ocidental seria condicionado definitivamente por essa “distinção”, tanto na medida de sua aceitação (o que é óbvio), como também na medida de sua não aceitação. Neste último caso, na verdade, terá que justificar polemicamente a não aceitação e, por força dessa polêmica, continuará dialeticamente a ser condicionado.
Após a “segunda navegação” platônica (e somente depois dela) é que se pode falar de “material” e “imaterial”, “sensível” e “supra-sensível”, “empírico” e “meta-empírico”, “físico” e “suprafísico”. E é à luz dessas categorias que os físicos anteriores se revelam materialistas e que a natureza e o cosmos não aparecem mais como a totalidade das coisas que existem, mas apenas como a totalidade das coisas que aparecem. O “verdadeiro ser” é constituído pela “realidade inteligível”.