E qual era a concepção de Deus que Sócrates ensinava, a ponto de oferecer a seus inimigos o pretexto para condená-lo à morte, já que era contrária aos “deuses em que a cidade acreditava”? Era a concepção indiretamente preparada pelos filósofos naturalistas, culminando no pensamento de Anaxágoras e de Diógenes de Apolônia: o Deus-inteligência ordenadora. Sócrates, porém, desligou essa concepção dos pressupostos próprios desses filósofos (sobretudo de Diógenes), “desfisicizando-a” e deslocando-a para um plano afastado o mais possível dos pressupostos próprios da “filosofia da natureza” anterior.
Sobre esse tema, pouco sabemos através de Platão, ao passo que Xenofonte nos informa amplamente. Eis o raciocínio registrado nos Memorabilia, que constitui a primeira prova racional da existência de Deus que chegou até nós e que iria constituir a base de todas as provas posteriores: a) Aquilo que não é simples obra do acaso, sendo constituído para alcançar um objetivo e um fim, pressupõe uma inteligência que o produziu por razões evidentes. Ademais, observando o homem, em especial, notamos que cada um e todos os seus órgãos estão constituídos de tal modo que não podem ser absolutamente explicáveis como obra do acaso, mas apenas como obra de uma inteligência que idealizou expressamente essa constituição, b) Contra esse argumento, poder-se-ia objetar que, ao contrário dos artífices terrenos, que podem ser vistos ao lado de suas obras, essa Inteligência não pode ser vista. Mas Sócrates observa que essa objeção não procede, porque a nossa alma (= inteligência) também não pode ser vista e, mesmo assim, ninguém ousa afirmar que, pelo fato de a alma (= inteligência) não ser vista, também não existe e que nós fazemos por acaso tudo o que fazemos, c) Por fim, segundo Sócrates, é possível estabelecer, com base nos privilégios que o homem tem em relação a todos os outros seres (como, por exemplo, a estrutura física mais perfeita e, sobretudo, a posse de alma e de inteligência), que o artífice divino cuidou do homem de um modo inteiramente particular.
Como se vê, o argumento gira em torno deste núcleo central: o mundo e o homem são constituídos de tal modo (ordem, finalidade) que só uma causa adequada (ordenadora, finalizante e, portanto, inteligente) pode explicá-los. E, com sua ironia, Sócrates lembrava àqueles que rejeitavam esse raciocínio que nós possuímos uma parte de todos os elementos que estão presentes em grandes massas no universo, coisa que ninguém ousa negar: como então poderíamos pretender que nós, homens, nos assenhoreamos de toda a inteligência que existe, não podendo haver nenhuma outra inteligência fora de nós? E evidente a incongruência lógica dessa pretensão.
O Deus de Sócrates, portanto, é a inteligência, que conhece todas as coisas sem exceção e é atividade ordenadora e providência. É uma providência, porém, que se ocupa com o mundo e os homens em geral, como também do homem virtuoso em particular (para a mentalidade antiga, o semelhante tem comunhão com o semelhante, razão pela qual Deus tem uma comunhão estrutural com o bom), mas não com o homem individualmente enquanto tal (a menos que se trate de homem mau). Somente no pensamento cristão é que surgiria uma providência que se ocupa com o indivíduo enquanto tal.