Reale: O “daimonion” socrático

Entre as acusações contra Sócrates estava também a de que era culpado “de introduzir novos daimónia”, novas entidades divinas. Em sua Apologia, Sócrates diz o seguinte a propósito da questão: “A razão (…) é aquela que muitas vezes e em diversas circunstâncias ouvistes dizer, ou seja, que em mim se verifica algo de divino e demoníaco, precisamente aquilo que Melito (o acusador), jocosamente, escreveu no seu ato de acusação: é como uma voz que se faz ouvir dentro de mim desde quando era menino e que, quando se faz ouvir, sempre me detém de fazer aquilo que estou a ponto de fazer, mas que nunca me exorta a fazer.” Portanto, o daimonion socrático era “uma voz divina” que lhe vetava determinadas coisas: ele o interpretava como uma espécie de sortilégio, que o salvou várias vezes dos perigos ou de experiências negativas.

Os estudiosos ficaram muito perplexo diante desse daimonion. E as exegeses que dele foram propostas são as mais díspares. Alguns pensaram que Sócrates estivesse ironizando, outros falaram de voz da consciência, outros do sentimento que perpassa o gênio. E até se poderia incomodar a psiquiatria para entender a “voz divina” como fato patológico ou então chamar à cena as categorias da psicanálise. Mas é claro que, assim fazendo, estamos caindo no arbítrio.

Se quisermos nos limitar aos fatos, devemos raciocinar como segue.

Em primeiro lugar, deve-se destacar que o daimonion não tem nada a ver com o campo das verdades filosóficas. Com efeito, a “voz divina” interior não revela em absoluto a Sócrates a “sabedoria humana” de que ele é portador, nem qualquer das propostas gerais ou particulares de sua ética. Para Sócrates, os princípios filosóficos extraem sua validade do logos e não da divina revelação.

Em segundo lugar, Sócrates não relacionou com o daimonion nem mesmo a sua opção moral de fundo, que, no entanto, ele considera provir de uma ordem divina: “Cabe-me fazer isto (fazer filosofia e exortar os homens a cuidarem da alma) porque fui ordenado por Deus, com vaticínios e sonhos, em suma, com qualquer daqueles modos pelos quais a sorte divina ordena, por vezes, o homem a fazer alguma coisa.” Já o daimonion não lhe “ordenava”, mas lhe “vetava”.

Excluídos os campos da filosofia e da opção ética de fundo, resta apenas o campo dos eventos e ações particulares. E é exatamente a esse campo que se referem todos os textos à disposição sobre o daimonion socrático. Trata-se, portanto, de um fato que diz respeito ao indivíduo Sócrates e aos acontecimentos particulares de sua existência: era um “sinal” que, como dissemos, o impedia de fazer coisas particulares que lhe teriam acarretado prejuízos. A coisa da qual o afastou mais firmemente foi a participação ativa na vida política, sobre o que ele diz: “Vós o sabeis bem, atenienses, que, se há tempos eu me houvesse metido a ocupar-me dos negócios do Estado (coisa da qual o demônio me afasta), há tempos eu já estaria morto e não teria feito nada de útil, nem para vós nem para mim.”

Em suma, o daimonion é algo que diz respeito à excepcional personalidade de Sócrates, devendo ser colocado no mesmo plano de certos momentos de concentração muito intensa, bastante próximos aos arrebatamentos de êxtase em que Sócrates mergulhava algumas vezes e que duravam longamente, coisa da qual nossas fontes falam expressamente. Portanto, o daimonion não deve ser relacionado com o pensamento e a filosofia de Sócrates: ele próprio manteve as duas coisas distintas e separadas—e o mesmo deve fazer o intérprete.

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