Excertos de “Giovanni Reale e Dario Antiseri – História da Filosofia”
A descoberta da essência do homem (o homem é a sua psyche)
Depois de um período de tempo em que ouviu a palavra dos últimos naturalistas, mas sem se considerar de modo algum satisfeito, como já dissemos, Sócrates concentrou definitivamente o seu interesse na problemática do homem. Procurando resolver os problemas do “princípio” e da physis, os naturalistas se contradisseram a ponto de sustentar tudo e o contrário de tudo (o ser é uno, o ser é múltiplo; nada se move, tudo se move; nada se gera nem se destrói, tudo se gera e se destrói), o que significa que se propuseram problemas insolúveis para o homem. Conseqüentemente, ele se concentrou no homem, como os sofistas, mas, ao contrário deles, soube chegar ao fundo da questão, a tal ponto que chegou a admitir, malgrado a sua afirmação geral de não-saber (da qual falaremos adiante), que era sábio nessa matéria: “Na verdade, atenienses, por nenhuma outra razão eu granjeei este nome senão por causa de certa sabedoria. E que sabedoria é essa? Essa sabedoria é precisamente a sabedoria humana (ou seja, a sabedoria que o homem pode ter sobre o homem)—e pode ser que, dessa sabedoria, eu seja sábio.”
Os naturalistas procuraram responder à seguinte questão: “O que é a natureza ou a realidade última das coisas?” Sócrates, porém, procura responder à questão: “O que é a natureza ou realidade última do homem?”, ou seja, “o que é a essência do homem?”.
Finalmente, a resposta é precisa e inequívoca: o homem é a sua alma, enquanto é precisamente a sua alma que o distingue especificamente de qualquer outra coisa. E por “alma” Sócrates entende a nossa razão e a sede de nossa atividade pensante e eticamente operante. Em breve: para Sócrates, a alma é o eu consciente, ou seja, a consciência e a personalidade intelectual e moral. Conseqüentemente, com essa sua descoberta, como foi justamente destacado, “Sócrates criou a tradição moral e intelectual da qual a Europa sempre viveu desde então” (A.E. Taylor). E um dos maiores historiadores do pensamento grego explicitou ainda mais: “Para nós, a palavra alma, graças às correntes espirituais pelas quais passou à história, soa sempre com uma acentuação ética e religiosa. Assim como as palavras serviço de Deus e cuidar da alma (estas também usadas por Sócrates), ela tem uma conotação cristã. Mas ela assumiu esse elevado significado pela primeira vez na pregação persuasiva de Sócrates” (W. Jaeger).
E evidente que, se a essência do homem é a alma, cuidar de si mesmo significa cuidar da própria alma mais do que do corpo. E ensinar os homens a cuidarem da própria alma é a tarefa suprema do educador, precisamente a tarefa que Sócrates considera ter recebido de Deus, como se lê naApologia: “Que é isto (…) é a ordem de Deus. E estou persuadido de que não há para vós maior bem na cidade do que esta minha obediência a Deus. Na verdade, não é outra coisa o que faço nestas minhas andanças a não ser persuadir a vós, jovens e velhos, de que não deveis cuidar do corpo, nem das riquezas, nem de qualquer outra coisa antes e mais do que da alma, de modo que ela se torne ótima e virtuosíssima, e de que não é das riquezas que nasce a virtude, mas da virtude que nasce a riqueza e todas as outras coisas que são bens para os homens, tanto individualmente para os cidadãos como para o Estado.”
Um dos raciocínios fundamentais feitos por Sócrates para provar essa tese é o seguinte: uma coisa é o “instrumento” que se usa e outra é o “sujeito” que usa o instrumento. Ora, o homem usa o seu próprio corpo como um instrumento, o que significa que o sujeito, que é o homem, e o instrumento, que é o corpo, são coisas distintas. Assim, à pergunta “o que é o homem?”, não se pode responder que é o seu corpo, mas sim que é “aquilo que se serve do corpo”. Mas “o que se serve do corpo é a psyche, a alma (= a inteligência)”, de modo que a conclusão é inevitável: “A alma nos ordena conhecer aquele que nos adverte: Conhece-te a ti mesmo. ” Nesse ponto, Sócrates já havia levado sua doutrina a tal ponto de consciência e de reflexão crítica que chegou a deduzir todas as conseqüências que logicamente brotam dela, como veremos.
O novo significado de “virtude” e o novo quadro de valores
Em grego, aquilo que nós hoje chamamos “virtude” se diz “areté”, como já acenamos, significando aquilo que torna uma coisa boa e perfeita naquilo que é, ou, melhor ainda, significa aquela atividade ou modo de ser que aperfeiçoa cada coisa, fazendo-a ser aquilo que deve ser. (Os gregos, portanto, falavam de virtude dos vários instrumentos, de virtude dos animais etc. Por exemplo: a “virtude” do cão é a de ser um bom guardião, a do cavalo é a de correr velozmente e assim por diante.) Conseqüentemente, a “virtude” do homem outra não pode ser senão aquilo que faz com que a alma seja tal como a sua natureza determina que seja, ou seja, boa e perfeita. E, segundo Sócrates, esse elemento é a “ciência” ou o “conhecimento”, ao passo que o “vício” seria a privação de ciência ou conhecimento, vale dizer, a “ignorância”.
Desse modo, Sócrates opera uma revolução no tradicional quadro de valores. Os verdadeiros valores não são aqueles ligados às coisas exteriores, como a riqueza, o poder, a fama, e tampouco os ligados ao corpo, como a vida, o vigor, a saúde física e a beleza, mas somente os valores da alma, que se resumem, todos, no “conhecimento”. Naturalmente, isso não significa que todos os valores tradicionais tornam-se desse modo “desvalores”; significa, simplesmente, que “em si mesmos, não têm valor”. Eles só se tornam ou não valores se forem usados como o “conhecimento” exige, ou seja, em função da alma e de sua “areté”.
Em resumo: riqueza, poder, fama, saúde, beleza e semelhantes “(…) ao que me parece, por sua natureza, não podem ser chamados de bens em si mesmos. A proposição é outra: dirigidos pela ignorância, revelam-se males maiores do que os seus contrários, porque mais capazes de servir a uma má direção; se, no entanto, são governados pelo juízo e pela ciência ou conhecimento, são bens maiores; em si mesmos, nem uns nem outros têm valor”.