Não obstante a fortuna que ganhou o pensamento implícito na fórmula «Do Mito ao Logos» (como se sabe, este é o título de um célebre trabalho de Wilhelm Nestle, que o mais sucintamente designava os primórdios do processo evolutivo do pensamento europeu), da mitologia para a filosofia, ainda ninguém conseguiu ver distintamente o caminho recto ou sinuoso e, portanto, traçá-lo em plano bem definido. Em momento algum, a filosofia grega nos aparece como abstração do mito helênico ou pré-helênico, como transposição pura e simples da mitologia em logomitia. Mas entre elas alguma relação tem de existir, pois seria inverosímil que o mesmo povo mentalmente vivesse em dois mundos diferentes, estranhos e incomunicáveis. Supondo, todavia, que o mito e o logos são efetivamente incomunicáveis e estranhos um ao outro, ainda podemos pensar que, apesar da incomunicabilidade e estranheza, alguma relação entre elas subsiste (daí a exigência da complementaridade que não é senão uma das formas que pode assumir o nosso anseio de unidade). Para o que teremos de enunciar uma ou algumas hipóteses preliminares. A primeira é esta: que a inverificável comunicação direta, entre a mitologia e a filosofia, indiretamente se estabeleça através de um tertium quid, e seja, este, a religião. A segunda, que lhe é subsidiária, consiste em acolher provisoriamente a suposição de que, em seus primeiros passos (aqueles de que a história procura os vestígios mais certos), a filosofia grega ainda não fosse tão lógica e a mitologia já não fosse tão mítica, a ponto de uma e outra se recolherem em si, a uma distância impossível de percorrer. E a terceira é que algum demônio astucioso, não sabemos porque maléfico desígnio, tenha querido ocultar-nos o facto possível de que todas três – religião, mitologia e filosofia – de mãos dadas, dançam em ronda por todo o vasto terreiro da história antiga (e por que não da moderna?). (Eudoro de Sousa, “Sempre o Mesmo acerca do Mesmo”)
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