República V

Rocha Pereira

Excertos da Introdução de Maria Helena da Rocha Pereira, à sua tradução da “República

Aqui, porém, insere-se o que tem sido chamada «a grande digressão»1 da República, e, como tal, considerado por vezes uma parte mais tardia do diálogo. O que sucede é que, na melhor tradição literária grega2, a discussão é interrompida no começo do Livro V; e voltamos a ver o agrupamento de figuras do proêmio, e a mesma arte de movimentar. É a ocasião em que Polemarco combina com Adimanto interromper Sócrates, para o forçar a explicar-se melhor sobre a comunidade de mulheres e filhos, anunciada em IV. 423e-424a.

E esse ponto que vai ser esclarecido, com grandes rodeios e precauções, expressas na metáfora das vagas marinhas, ao longo do Livro V. Primeiro, far-se-á a proposta de que as mulheres, podendo ter a mesma capacidade dos homens, devem tomar parte nos cargos diretivos da cidade; segundo, expor-se-á o complicado sistema pelo qual se realizarão os casamentos e a procriação na classe dos guardiões, de molde a obter o mais alto grau de eugenia; a terceira, a mais temível das vagas, consiste em proclamar a condição necessária para que tal Estado se torne realizável: que seja governado por filósofos3. A afirmação conduz, naturalmente, à definição do que seja um filósofo e à distinção, com que encerra o livro, entre saber e opinião, entre o «amigo do saber» (philosophos) e o «amigo da opinião» (philodoxos)4.

Francis Wolff

  • Parte II (L4, L5-L7): Condições para realizar a justiça assim definida
    • A) Primeira condição: Igualdade dos homens e das mulheres (V 451c-457c)
      • Esta igualdade concerne tanto as funções públicas quanto a educação pois a diferença sexual não implica nenhuma diferença de atitude.

        As mulheres poderão ser Guardiães, guerreiras, filósofas

    • B) Segunda condição: Comunidade de mulheres e de crianças nos guerreiros (V, 457c-471c)
      • Principais vantagens da abolição da família
        • o eugenismo (controle do número de uniões e seleção dos melhores casamentos pelo Estado, sorteios eventualmente falsificados) por um lado

          a educação pelo Estado das crianças (fora da vista de seus pais) depois de seu nascimento (infanticidas eventuais), por outro lado, garantem a melhor sociedade possível, sem propriedade privada de nenhuma espécie, e logo sem dissensão, entre Guardiões, e por conseguinte entre cidadãos

          a educação das crianças deve em particular as associar para a guerra, para a qual devem ser instituídas recompensas e punições e na qual se fará uma distinção clara entre gregos (que não se deverá reduzir à escravidão) e não-gregos

      • Transição: o Estado descrito até o presente
        • que é incontestavelmente justo
        • é realizável?
        • não o será a não ser quando a terceira condição será realizada
    • C Terceira condição: o filósofo Rei (V, 473c até o fim do L7)
      • Dito de outra forma: o Estado justo só realizável se os filósofos se tornam governantes ou se os governantes se tornam filósofos

        1 O que é um filósofo? (V, 474d – VI, 488a)

        • Primeira definição: um “apaixonado da sabedoria” (ou “amigo do saber” philo-sophia)
          • Objeção: esta definição confunde o filósofo e o curioso ( o amador de espetáculos)
        • Segunda definição: o filósofo é aquele que só ama o espetáculo da verdade
          • é preciso distinguir
            • por um lado as Formas reais (eide) – por exemplo o justo e o injusto, o belo e o feio – e suas aparências múltiplas;

              por outro lado, o conhecimento das realidades existentes e a opinião (intermediário entre conhecimento e ignorância) que se tem sobre as aparências (intermediária entre ser e não-ser)

            o conhecimento é infalível, a opinião, a opinião pode ser verdadeira ou falsa

            As Formas e aquilo que é: o conhecimento porta sobre objetos únicos e imutáveis (sempre F), a opinião sobre objetos múltiplos e mutáveis, as vezes F as vezes não-F

        • Consequência da definição
          • o filósofo é o mais apto a governar

            de sua essência (amar a realidade, toda a realidade, nada mais que a realidade) se deduzem com efeito todas as suas outras virtudes

            Estas virtudes são

            • a sinceridade
            • a moderação
            • a grandeza d’alma
            • a coragem
            • a justiça
            • a doçura
            • a facilidade de aprender
            • a memória
            • a medida
        • Objeção de fato
          • os filósofos parecem bem incapazes de governar

Eggers Lan

LIBRO V
451d Naturaleza y tareas de la mujer

En cuanto a la naturaleza difieren entre sí un hombre carpintero y otro médico, no un hombre médico y una mujer médica: las dotes naturales están similarmente distribuidas en el hombre y la mujer; sólo difieren en que la mujer es más débil. Por lo tanto las mujeres deben realizar las mismas tareas que los hombres y recibir la misma educación.

457e Comunidad de mujeres y de niños

Ninguna mujer cohabitará en privado con un hombre; las mujeres serán comunes a todos los hombres. Por participar de las mismas tareas, llegarán a la unión sexual; se celebrarán matrimonios sagrados entre los mejores guardianes y las mejores guardianes. Los hijos serán comunes y no sabrán quiénes son sus padres; su educación será confiada a magistrados, separándose a los mejores.

462a Carácter comunitario de la sociedad

El mayor mal para el Estado es lo que lo divide y el mayor bien lo que lo une. Por ende, debe haber una comunidad de placer y dolor: todos los ciudadanos deben poder regocijarse y entristecerse por las mismas cosas (por decir todos ‘mío’ a lo mismo).

469b La esclavitud y las luchas entre griegos

Los griegos no harán esclavos a otros griegos, sino sólo a los bárbaros. En las guerras entre griegos no se despojará a los cadáveres, excepto de sus armas, y éstas no serán ofrendadas en los templos; no depredarán los campos ni incendiarán las casas de los vencidos.

471e Glaucón: ¿es posible que tal organización política exista?

Sócrates: se ha indagado qué es la justicia y el hombre justo para proponerlos como paradigmas para nuestros actos, no para demostrar que su existencia es posible. La praxis alcanza siempre menos la verdad que las palabras. Más bien hay que demostrar cómo se puede fundar el Estado más próximo al descrito. La condición es que los filósofos reinen en los Estados o los gobernantes filosofen.

474b El filósofo

Los que aman algo lo aman en su totalidad y no en una parle; así el ‘amante de la sabiduría’ (philósophos) es aquel que gusta de lodo estudio, sin hartarse nunca. Pero hay que distinguir el ‘verdadero filósofo’ del que es ‘parecido a un filósofo’.

475e Los filósofos y las Ideas

Lo Bello, lo Justo, lo Bueno y todas las Ideas son una cada una, pero, al aparecer en comunión con acciones, cuerpos y unas con otras, cada una parece múltiple. Los verdaderos filósofos, a diferencia de los parecidos a filósofos, no confunden la Idea con las cosas que de ella participan.

476d El objeto del conocimiento y el objeto de la opinión

El que conoce, conoce algo que es (ón), no puede conocer lo que no es (mé ón). A lo que es corresponde el conocimiento científico (epistéme), a lo que no es corresponde la ignorancia. También el que opina debe opinar sobre algo y no sobre lo que no es, pero la opinión (dóxa) es algo más oscuro que el conocimiento y más claro que la ignorancia, y por ende corresponde a algo intermedio entre lo que es y lo que no es: la multiplicidad, p. ej., de cosas bellas es algo intermedio entre la esencia (ousía) y el do ser (tò mé eínai). Los que gustan de ella son amantes de la opinión (philódoxoi), no filósofos.

G.R.F.Ferrari

449a: Socrates is about to describe the varieties of unjust society when he is distracted by a whispered transaction between Polemarchus and Adeimantus. Invited to speak up, they demand a more detailed account from him of the proposal that women and children should be held in common among the guardians. – 451c: Socrates begins with an argument that female members of the guardian class should perform the same tasks as male guardians. Against the objection that women should be assigned different tasks from men because they differ from men by nature (453b), he responds that this natural difference is not relevant when it comes to running a city (453e). Having shown that this proposal is feasible, he also argues that it is optimal (456c). – 457d: Socrates’ second proposal is that there should be no separate families among the guardians. He postpones consideration of its feasibility in order to consider its optimality (458a), and begins by explaining the sexual and eugenic regulations that will be required of the guardians (458c), before describing how these arrangements will achieve a unity among the guardians that can then extend to all the citizens (462a). He points out that, living this way, the guardians are likely to be extremely happy (465d). Once again the feasibility of these arrangements is mooted (466d). Socrates launches into an account of how the guardians will make war (466e), but is presently interrupted by Glaucon, who demands to know precisely how it is possible for a society such as this to come into being (471c). – 472a: After a preamble explaining that the theoretical model of the ideal city remains valid even if its feasibility cannot be demonstrated, Socrates responds that the model cannot become reality unless philosophers become kings, or kings philosophers (473c). To justify this claim, an analysis of philosophy is required (474b). Only philosophers recognise and take pleasure in the single form behind the multiplicity of appearances (476a). Socrates offers an argument to distinguish the philosopher’s knowledge from mere opinion (476e).


  1. V. Goldschmidt, que divide a obra platônica, sob o ponto de vista estrutural, em diálogos aporéticos e diálogos acabados, considera característica destes últimos o que denomina «détour essentiel» e especifica (Les Dialogues de Platon, p. 163): «Estes diálogos apresentam «alongamentos» cujo acesso nos fica vedado, se os considerarmos como digressões. Cada diálogo propõe-se tratar um assunto, do qual o desvio não se afasta, se não para o delimitar melhor». Também P. Shorey, What Plato Said, p. 225, considera esses passos como «a pedra angular» da construção completa. 

  2. No Canto XI da Odisseia, a narrativa dos errores de Ulisses perante a corte dos reis dos Peaces, principiada no Canto IX, é interrompida, porque, observa o herói, não é possível contar tudo e são horas de descansar (328-332). Mas Alcínoo pede-lhe que a continue (362-376), o que ele faz, até a deixar completa no final do Canto XII. (Pomos de parte, naturalmente, as múltiplas e justificadas dúvidas levantadas pela crítica homérica quanto às interpolações deste Canto XI, pois são irrelevantes para a época de Platão). Por outro lado, o «segundo prólogo» nas tragédias é uma prática conhecida dos leitores de Eurípides. 

  3. A bibliografia sobre a posição dos historiadores e sociólogos modernos quanto ao filósofo-rei (philosophos-basileus) pode ver-se em P. Friedländer, Plato, 3, pp. 482-483, n. 41. 

  4. Em grego, a oposição dos dois conceitos é mais clara, pois se exprimem ambos por compostos, cujo primeiro elemento é comum (philo-). Não é demais acentuar a importância desta definição de filósofo, tanto mais que há boas razões para crer que o composto não ascende a Pitágoras, como uma tradição numerosa, mas tardia, fazia crer até há pouco tempo, mas que se originou no ensino da Academia. Sobre este assunto, veja-se a n. 26 ao Livro V, infra, e o que escrevemos em Estudos de História da Cultura Clássica, P, p. 187 e bibliografia citada na n. 8 da p. 185. [Na 8.a ed., 1998. pp. 245-247 e bibliografia citada na nota 8 da p. 212.] Note-se que o filósofo que aqui se define não é, como diz E. Havelock, Preface to Plato, p. 281, «um membro de uma escola de pensamento entre outras escolas, equipado com doutrinas expressas em fórmulas convenientemente sistematizadas», mas, «no fundo, um homem com capacidade para o abstrato» (ibidem, p. 282), ou melhor ainda, na expressão de J. E. Raven (Plato’s Thought in the Making, p. 128), «nada menos do que o homem perfeito, que une na sua pessoa todas as virtudes humanas que possam conceber-se».