A réplica as grosseiras doutrinas de felicidade vai ser dada sob a forma de um mito – processo literário que estava fortemente enraizado na tradição grega, quer na épica, quer na lírica, e que surge nos diálogos, a substituir a discussão dialéctica, quando se passa da esfera do certo para a do provável1. Expor desta forma doutrinas escatológicas foi, além disso, praticado mais vezes por Platão: no Górgias, no Fédon e no Fedro. E se, no primeiro destes diálogos, se mantém ainda bastante próximo da tradição sobre o além – excepto num ponto essencial, que é a definitiva vinculação do destino último das almas ao seu procedimento moral em vida – nos outros a descrição enquadra-se numa visão cósmica a que não deve ser estranho (sobretudo na República e no Fedro) o crescente interesse do Filósofo pela astronomia.
Pressupõem a doutrina da metempsicose2 e, nos dois últimos, a teoria da reminiscência (que é um dos aspectos da teoria das ideias, presente também no Fédon), a qual, no Fedro, ocupa um lugar preponderante.
O mito de Er apresenta a estrutura tripartida que é comum aos três3: uma breve introdução (X. 614a), a extensa narrativa (X. 614b-621b) e a conclusão, que neste caso é uma exortação à virtude (X. 621c-d).
Ao principiar essa narrativa, Platão alude a um modelo homérico – os «Contos de Alcínoo», designação genérica dada os Cantos IX a XII da Odisseia, em que o herói dos mil expedientes desenrola perante os reis dos Feaces as suas fantásticas aventuras. A referência ao padrão homérico, ao tratar de escatologia, era nossa conhecida do Górgias, cujo mito era posto sob essa autoridade4. Mas agora o nome de Alcínoo é utilizado para formar um jogo de palavras com o adjectivo alkimos («valoroso»), que qualifica o imaginário informador – Er, filho de Armênio, natural de Panfília. Sob o gracioso contraste, tão ao gosto do autor do Crátilo, esconde-se outro de significado muito mais profundo: a história que vai contar-se não é uma daquelas que, umas páginas atrás (X. 606e-607a.), tinham sido excluídas, por impróprias, da cidade ideal; pelo contrário, diz respeito ao grande combate (megas agon — X. 608b), que já referimos, «o que consiste em nos tornarmos bons ou maus». E um primeiro exemplo da literatura que merece ser admitida na cidade ideal.
Er fora protagonista de uma estranha experiência: tendo morrido numa batalha, quando, ao fim de doze dias, o seu corpo estava na pira para ser cremado, tomou à vida e pôde contar as cenas maravilhosas a que tinha assistido no além, durante esse tempo. A primeira era o julgamento das almas, num lugar entre as duas aberturas que conduziam ao céu e outras duas que comunicavam com a terra. Pelo caminho ascendente da direita seguiam os justos, pelo oposto os injustos. Pela outra abertura celeste vinham as almas que desciam purificadas; pela terrestre, surgiam as que regressavam de uma viagem subterrânea de mil anos, cheia de sofrimento. Entre estes, cita-se o exemplo de um tirano da Panfília, Ardieu o Grande, a quem nunca seria permitido acabar a expiação, tantos eram os seus crimes. Esta cena culmina no momento dramático em que a Ardieu e outros grandes culpados é recusada a passagem pela abertura, ao som de um terrível mugido, e «homens selvagens que pareciam de fogo» (615c) aganam neles e os levam.
A segunda cena contém o quadro da estrutura do universo, com a grande luz «direita como uma coluna, muito semelhante ao arco-íris, mas mais brilhante e mais pura» (616b), que segura a esfera em movimento. Das suas extremidades, pendia o fuso da Necessidade, cuja complexa estrutura é descrita quanto à forma e á cor, em termos tais que nos permitem adivinhar neles a correspondência com o Sol, a Lua, os cinco planetas então conhecidos e as «estrelas fixas». O fuso repousa nos joelhos da Necessidade, e, no cimo do rebordo circular de cada um dos seus contrapesos, uma Sereia, girando com ele, emite uma nota musical. Do acorde dessas oito notas resulta a «harmonia das esferas». Além dessas figuras femininas, estão lá também as três Parcas ou Moirai, que cantam o passado (Láquesis), o presente (Cloto) e o futuro (Átropos), fazendo girar o fuso.
No mesmo augusto lugar se realiza a proclamação do hierofante, para que cada uma das almas ali chegadas, ao fim de oito dias de viagem, faça a sua escolha. Er assiste a esse ato, em que tomam parte figuras célebres da mitologia, como Otfeu, Ajax, Agamémnom, Ulisses, cada um dos quais dá preferência a um modelo oposto ao género de vida que anteriormente tinha seguido. O contraste maior é entre um homem não-nomeado, que se precipita para apanhar a sorte de um tirano, sem reparar a tempo nos horrores que ela comportava, e Ulisses, que levanta do chão uma sorte por todos desdenhada – a de uma vida simples e sem ambições. Ratificada a escolha do destino pelas Parcas, atingimos o último quadro, através de uma planura escaldante e desprovida de vegetação. Tanto o nome da planura (Letes, «esquecimento»), como o do no de que as almas bebem antes de reincarnarem (Ameles, «despreocupação») são significativos da função desta cena final, que termina com um trovão e a fuga das almas, «cintilando como estrelas» (621b), para nascerem nos lugares que lhes estavam determinados.
Esta é a interpretação tradicional, representada por A. Rivaud, Histoire de la Philosophie, Paris, 1, 1960, p. 179. Uma análise do mito em Platão pode ver-se em P. Friedländer, Plato, 1, cap. 9, que o descreve como um processo de levar o logos para além dos seus limites, e na obra mais recente (que em parte desenvolve a anterior) de W. Hirsch, Platons Weg zum Mythos, Berlin, 1971.
Pelas razões expostas supra, p. xxvii e n. 71, não estamos a considerar nesta rubrica a alegoria da Caverna, nem outras histórias menores, como a do anel de Giges (II. 359b-360b) ou a das raças humanas (III. 4i5a-c). ↩Deste e dos restantes mitos escatológicos de Platão tratamos já na dissertação citada na nota anterior, pp. 77-91,169-184,198-201. ↩
523a. Cf. H. W. Thomas, Epekeina. Untersuchungen über das Überlieferungsgut in den Jenseitsmythen Platons, diss. München, 1938, pp. 6, 8 seqq. ↩