thymos (Sloterdijk)

Excerto de SLOTERDIJK, Peter. Ira e Tempo. Ensaio político-psicológico. Tr. Marco Casanova. Rio de Janeiro: Estação Liberdade, 2012, p. 36-37

No quarto livro do texto sobre o estado, a Politeia, Platão fornece os contornos básicos de uma doutrina do thymos que possui uma grande amplitude psicológica e uma significação política enorme. A performance destacada do thymos interpretado platonicamente consiste em sua capacidade de colocar uma pessoa contra si mesma. Essa virada contra si mesma pode acontecer quando a pessoa não preenche os requisitos necessários para que ela não perca a autoestima. A descoberta platônica reside na referência à significação moral da autorreprovação violenta. Essa autorreprovação manifesta-se duplamente — por um lado, na vergonha, como uma atmosfera afetiva total que penetra o sujeito até o seu ponto mais íntimo, e, por outro lado, na autorrepreensão dotada de um acento irado que assume a forma de uma fala interior consigo mesmo. A autorreprovação demonstra ao pensador que o homem possui uma ideia inata, ainda que turva, daquilo que é apropriado, justo e louvável, cujo desrespeito faz uma parte da alma, justamente o thymos, manifestar sua objeção. Com essa virada para a autorrecusa inicia-se a aventura da autonomia. Somente quem pode repreender a si mesmo pode governar a si mesmo.

A concepção socrático-platônica do thymos forma, tal como aludimos acima, um marco no caminho que conduz à domesticação moral da ira. Ela se coloca a meio caminho entre a veneração semidivina da menis homérica e a rejeição estoica de todos os impulsos irados e abruptos. Graças à doutrina platônica do thymos, as emoções civis belicosas receberam a permissão de permanecer na cidade dos filósofos. Uma vez que a polis governada racionalmente também precisa de militares que figuram aqui como a classe dos “guardiões”, o thymos civilizado pode ter alojamento em seus muros como o espírito próprio à capacidade de defesa. O reconhecimento das virtudes aptas à defesa como forças plásticas presentes no ser comum é pesado por Platão em formulações sempre novas. Mesmo no diálogo tardio O político, que trata do ofício do homem de Estado, a famosa alegoria do tecelão acentua a necessidade de produzir o tecido mímico do “Estado” sob o entrelaçamento tanto do modo de ser sensato do ânimo, quanto da meditação corajosa.

Na linha dos impulsos platônicos, Aristóteles também tem algo meritório a dizer sobre a ira. Ele fornece um testemunho espantosamente favorável sobre este afeto, uma vez que o associa à coragem e se mobiliza para o afastamento apropriado de injustiças. A ira legítima ainda tem “um ouvido para a razão”Aristóteles, Ética a Nicômaco, VII, 7., ainda que se abata com frequência sobre nós como um servo precipitado, sem ouvir a sua tarefa até o final. Ela só se torna um mal quando surge juntamente com a destemperança, de modo que, perdendo o ponto médio, transborda em desmedida. “A ira é necessária e nada pode se impor sem ela, caso ela não preencha a alma e atice a coragem. No entanto, não devemos tomá-la certamente por um líder, mas apenas por um companheiro de combate.”Sêneca, que cita esta passagem do ensaio de Aristóteles, Sobre a alma, em seu escrito Da ira (I 9), contradiz o pensador grego com o argumento de que os afetos em geral são ruins, tanto como auxiliares quanto como líderes.