Excerto resumido de SNELL, Bruno. A Cultura Grega e as Origens do Pensamento Europeu. São Paulo: Perspectiva, 2005, p. 5-8 (versão em inglês).
Segundo Bruno Snell, já Aristarco observava que a palavra σώμα (soma), que mais tarde significará “corpo”, jamais se refere, em Homero, aos viventes: σώμα significa “cadáver”. Mas que palavra usa Homero para indicar o corpo? Aristarco achava que δέμας (démas) seria, para Homero, o corpo vivo. Mas isso só vale para certos casos. Por exemplo, a frase “seu corpo era pequeno” e a frase “seu corpo assemelhava-se ao de um deus” é expressa deste modo. Todavia, δέμας é um paupérrimo substituto da palavra “corpo”: encontra-se apenas no acusativo de relação. Significa “de figura”, “de estrutura”, limitando-se, por isso, a poucas expressões como ser pequeno ou grande, parecer-se com alguém, e assim por diante. Nisto, porém, Aristarco tem razão: entre as palavras que encontramos em Homero a que, mais que todas, corresponde à forma mais tardia σώμα é a palavra δέμας. Mas Homero também tem outras palavras para indicar o que chamamos de corpo e que os gregos do século V designam com σώμα.
Ao invés de “corpo”, fala-se de “membros”; γυῑα (güîa) são os membros enquanto movidos pelas articulações, onde Aristarco entende por γυῑα os braços e as pernas, já μέλεα (mélea), os membros enquanto recebem força dos músculos. Além disso, existem em Homero, sempre dentro dessa linha, as palavras αψεα (hápsea) e ρέθεα (rhéthea). Mas podemos aqui pô-las de lado; αψεα encontra-se apenas duas vezes na Odisseia em lugar de γυῑα; ρέθεα é, de resto interpretado erroneamente nesse significado.
Prosseguindo no jogo de transportar não a língua de Homero para a nossa, mas a nossa língua para a homérica, descobrimos outros modos de traduzir a palavra “corpo”. Como devemos traduzir “ele lavou o próprio corpo”? Ou então, como diz Homero, “a espada penetrou em seu corpo”? Aqui Homero usa ainda a palavra χρώς (khros). Nas referências a essas passagens. Acreditou-se que χρως significasse “corpo” e não “pele”.
Mas não há dúvida de que χρως, na verdade, seja a pele; não, naturalmente, a pele no sentido anatômico, a pele que se pode destacar e que seria ο δέρμα (dérma), e sim a pele como superfície do corpo, como invólucro, como portadora da cor, e assim por diante. Na realidade, χρως assume: numa série de frases, ainda mais decisivamente, o significado de “corpo”.
Parece-nos estranho que não haja existido uma palavra que exprimisse o significado de corpo como tal. Das frases citadas que podiam ser empregadas naquele tempo para corpo em lugar da expressão mais tardia σώμα (soma), somente os plurais γυία (güía), μέλεα (mélea) etc. permanecem indicando a corporeidade do corpo, visto que χρως é apenas o limite do corpo e δέμας (démas) significa estatura, corporatura, e só o encontramos no acusativo de relação. A prova de que, nessa época, o corpo substancial do homem foi concebido não como unidade mas como pluralidade aparece até mesmo no modo como a arte grega arcaica delineia a figura do homem.
Só a arte clássica do século V irá representar o corpo como um complexo orgânico, unitário, no qual as diversas partes estão relacionadas umas com as outras. Anteriormente, o corpo era de fato construído juntando-se as partes isoladas. A figura desenhada do corpo humano ao tempo dos poemas homéricos difere, porém, notavelmente, da que nos é dada, por exemplo, pelos desenhos primitivos das nossas crianças, embora também elas outra coisa não façam além de juntar membros isolados. Nossas crianças põem no centro, como parte principal, o tronco, e a ele acrescentam a cabeça, os braços e as pernas. Às figuras da fase geométrica, ao contrário, falta exatamente essa parte principal; isto é, elas são autenticamente membros com músculos fortes, distintos uns dos outros por juntas fortemente acentuadas. Não há dúvida de que, nessa diferença, também o ornato desempenha seu papel, mas importância ainda maior tem aqui aquela particular maneira de ver as coisas de forma “articulada”, própria dos gregos da primeira era. Para eles, os membros distinguem-se muito claramente uns dos outros, as articulações são acentuadas em sua particular sutileza que se contrapõe à exagerada grossura das partes carnosas. O desenho grego primitivo capta a mobilidade do corpo humano, o desenho infantil representa sua compacidade. O fato de que os gregos dos primeiros séculos não concebem o corpo como unidade, nem na língua nem nas artes plásticas, confirma o que nos haviam demonstrado os diversos verbos de “ver”.
Naturalmente, até mesmo os homens homéricos tiveram um corpo como os gregos da época mais tardia, mas não sentiam como “corpo”, e sim, como um conjunto de membros. Pode-se, portanto, dizer também que os gregos homéricos ainda não tinham um corpo na verdadeira acepção da palavra: corpo, σώμα (soma), é uma interpretação tardia do que inicialmente se concebia como μέλη (mélê) ou γυῑα (güîa), como “membros”, e, de fato, Homero fala sempre de ágeis pernas, de móveis joelhos, de fortes braços, visto que esses membros representam para ele uma coisa viva, o que impressiona aos olhos.