O HOMEM (cont.)
Excertos de Micheline Sauvage, Sócrates. Agir, 1959 (original em francês: Socrate ou la conscience de l’homme
Mas a verdadeira contradição se localiza mais profundamente, a começar pela que existe entre a função do homem e o tom habitual de suas tiradas. O Sócrates terrivelmente ordinário dos Memoráveis decepciona e irrita, e a tendência atual é de tratá-lo com desdém. Convém, todavia, precaver-se para não pecar contra a doutrina socrática procedendo desta forma. Onde quer que se reúnam os homens para seus negócios ordinários no mercado, em praça pública ou no apartamento de uma cortezã, aí aparece Sócrates trazendo sua palavra. Acontece simplesmente que para ele a filosofia não consiste numa atividade de especialistas. Platão já será um especialista pelos subentendidos que usa e pelas complacências indulgentes para com os filisteus (a boa gente excluída da roda filosófica) que frisam a hipocrisia, — pois os subentendidos de iniciado e as complacências para com os não-iniciados são condescendências que não ousam se manifestar abertamente. Então, a filosofia se afasta do povo e torna-se apanágio dos letrados. Mas Sócrates é um homem comum e a sinceridade de sua ironia é a própria negação das condescendências. Ninguém compreendeu e exprimiu melhor isto do que Kierkegaard, “esta humanidade tão nobre e tão perfeita, que foi a sua, não busca vãmente a companhia da súcia dos intelectuais mas, se sente igualmente próxima de um simples peleiro” e que falava “da mesma maneira absoluta para qualquer interlocutor”. Sócrates não conhece o desprezo e ignora a linguagem da suficiência (“nós os filósofos”, etc, — cada um pode substituir pela designação de sua própria especialidade transformada para si em verdadeira casta); é nisto, em particular, que ele se distingue dos sofistas, a cujo número pertencia.
Nesta sociedade ao mesmo tempo igualitária e profundamente aristocrática formada pela comunidade ateniense, Sócrates parece ter encarado todos os homens fossem quais fossem, ricos ou pobres, bem dotados ou simples, cultos ou rudes, atenienses ou estrangeiros, com o mesmo olhar fraternal. Não há dúvida que ele próprio era nada menos que um eupatrida. Mas esta fraternidade excluía toda preferência suspeita pelos humildes, e, conforme sabemos, seus gostos políticos não o inclinavam para a demagogia. O olhar fraternal de Sócrates antes parece atingir em cheio, sob as aparências humanas onde reinam as idiossincrasias, a variedade e a anedota, a região mais profunda em que se radica a própria pessoa. Na conjuntura de tempo e lugar em que viveu, tal fraternidade historicamente é prematura. Isto, lhe vale o desprezo de certas pessoas distintas de Atenas, e alguns malévolos notórios aproveitarão para lhe forjar uma reputação de vulgaridade. Os cristãos, porém, descobrem, com admiração, em semelhante atitude, uma espécie de antecipação confusa da palavra de São Paulo: “Perante Deus não existe acepção de pessoas”.