Sócrates e as leis

O HOMEM (cont.)
Excertos de Micheline Sauvage, Sócrates. Agir, 1959 (original em francês: Socrate ou la conscience de l’homme

Embora testemunhe então pelas leis e tradições de Atenas o respeito que o cidadão lhe deve, a ironia do filósofo, porém, ao postular um respeito livremente consentido, acarreta-lhe, contudo, a segregação da comunidade ateniense. Ora, isto é perigoso tanto em Atenas como alhures. Tanto mais perigoso em Atenas, pelo fato deste isolamento se agravar com uma abstenção política bastante insólita para que Sócrates tenha sentido necessidade de se explicar a respeito longamente perante o tribunal. Vemo-lo uma única vez participar nos negócios públicos. É em 406 (conta então sessenta e três anos), por ocasião do assim chamado processo dos generais. O episódio é assaz significativo. Os estrategos vencedores na batalha naval das Arginusas eram acusados de não ter recolhido seus mortos depois do combate, — dever de piedade em cujo confronto a vitória lograda era tida por nada, uma vez que, para a religiosa Atenas, o valor sacral de um ato primava sobre sua importância profana. A questão, muito simples nas origens, é bastante confusa em sua evolução. Mas seja como for, quem detinha a pritania por ocasião do julgamento era a tribo de Sócrates (a tribo de Antiochis). Depois de debates tumultuosos no Conselho dos Quinhentos, os pritanos, cedendo perante ameaça popular, acabaram por aceitar a proposição ilegal de julgar em bloco os acusados que a lei ordenava fossem julgados separadamente. Sobre os cinquenta pritanos só houve um que votou contra, Sócrates. Essa lucidez que não é obnubilada pelos movimentos emocionais e que conserva a imparcialidade em meio ao ressentimento público é sua única maneira de tomar parte ativa no governo, numa cidade que não conhece aquilo que nós chamamos de abstencionismo. Dois ou três anos mais tarde é ainda uma conduta análoga a que ele mantém em face das violências dos Trinta, uma conduta de recusa.

Entretanto, tudo parece concorrer para dispor este especialista dos negócios humanos, este filósofo da vida civil, à intervenção positiva: para tanto basta pensar em particular no Sócrates dos Memoráveis. Mas a contradição não devia ser menos sensível a seus próprios concidadãos que a nós mesmos, se julgarmos pela maneira como Platão e Xenofontes falaram a respeito desta questão espinhosa. É ainda por sua missão que ele se justifica. A justificação, porém, que ele usa, menos desagradável para Atenas que para toda a cidade, lança uma luz viva sobre um conflito eternamente agudo e dramático. “O combate que eu travo, diz em substância, não concorda com a vida política porque não aceita compromissos e tergiversações”. E conclui com ironia: “Se me tivesse dedicado à política já estaria morto há muito tempo e assim não teria sido útil nem a vós nem a mim mesmo… Sim, se alguém pretende combater realmente pela justiça, e se querem, não obstante, que conserve a vida por um pouco de tempo, é necessário que permaneça simples particular, que não seja homem público”. Sócrates não quer sujar as mãos, não porque tema “se engajar”, como hoje se diz vulgarmente, mas porque crê que certa sujeira reflui inevitavelmente das mãos à alma, e também porque é um homem para o qual o homem interior existe. Podemos chamar isto de trapaça com a existência, na medida em que perdemos o sentido da sabedoria e aprendemos a avaliar a eficácia humana em termos de quantidade; mas quem ainda pensa conforme a sabedoria (como a alma do Oriente, em particular, com a qual a alma socrática possui afinidades encobertas pela influência decisiva de Sócrates sobre o destino do pensamento ocidental) compreende que, se a missão do filósofo é levar os Atenienses à plenitude da consciência e da autonomia pessoal, a essa arete nova, traduzida tão mal por nosso vocábulo pobre e insulso, — virtude —, tal missão lhe proíbe também renunciar para si ao que quer para os outros. Este político nato é, portanto, enquanto tal um não-político, pois assim o exige o deus interior. E (como acontece com a voz do demônio platônico) sua intervenção excepcional nos negócios da cidade só poderá ser inibidora, pois quem concita a homens reunidos para a ação pode sempre mobilizar os entusiasmos, os furores e os pânicos, mas aquele que se lhes opõe apela necessariamente para a razão de cada um. Foi o que fez Sócrates por ocasião do processo das Arginusas. Este filho de artesão trabalha em escala artesanal, buscando indivíduos para deles fazer pessoas. A missão délfica desvia-o de uma eficácia ilusória para uma eficácia propriamente espiritual. “É isto o que me ordena o deus, ouvi-o bem: por minha vez, penso que jamais aconteceu algo de mais vantajoso para a cidade que meu zelo em executar esta ordem.

O sorriso do filósofo corresponde, pois, à recusa em abdicar da própria liberdade em favor de quem ou de que quer que seja. Não exprime, por certo, uma posição confortável, mas uma tarefa que lhe incumbe pessoalmente e não à outrem. Sócrates fez.frente, a multidão. Resistiu aos Trinta, pôs-se, por fim, à cidade por amor à cidade: “Atenienses) eu vos amo; mas, antes, obedecerei ao deus que a vós”. O filósofo não é o homem dos compromissos. Sua cidadania exige tal solidão, e Cícero não traiu a Sócrates; comer alguns creram, chamando-o de cosmopolita, cidadão do mundo, com uma palavra forjada depois dele, pois assim é justamente o homem que o deus enviou aos Atenienses.

Isto, porém, devia acabar mal. Houve quem dissesse que sua morte foi “ilógica”. Efetivamente, era inevitável que a cidade reagisse. Porque Ateniense, Sócrates é mais inquietante que um jônico como Anaxágoras. Pelo fato de encarnar a consciência de Atenas, ele é mais inquietante que o mais audacioso dos perscrutadores do céu, com os quais confundem-no a verve de Aristófanes e a denúncia de Anytos, por não saberem enunciar corretamente a acusação. O efeito ambíguo que produziu sobre Alcibíades, — fascínio e mal-estar —, aplica-se também à cidade que se entusiasma e recusa. Atenas sente necessidade de Sócrates, como nós todos sentimos, cedo ou tarde, necessidade de despojarmo-nos do homem velho, no dizer de São Paulo. Todavia, é mais tranquilizante continuar a viver como antes, — a criar filhos, vender o azeite de oliveira, ir à guerra, honrar os antepassados e crer nos deuses, sem se interrogar sobre aquilo que fazemos e sobre a maneira justa de fazê-lo. Ora, isto precisamente é o que Sócrates torna impossível. Ele faz cessar esta tranquilidade de alma. Como todo sábio, propõe aos homens a felicidade como soberano bem, mas começa por subtrair-lhes a felicidade mais imediata e mais ao alcance deles: a da inconsciência sem conflitos e sem problemas. Em suma, impede os Atenienses de dormir.