O HOMEM (cont.)
Excertos de Micheline Sauvage, Sócrates. Agir, 1959 (original em francês: Socrate ou la conscience de l’homme
Seu interlocutor no Euthyphron é, por felicidade, um dos personagens platônicos cuja veracidade histórica é menos sujeita a caução. Nele se encarna exatamente a piedade ateniense. Eutifron é um doutor em coisas divinas. Por conseguinte, um “teólogo” que possui a fundo as narrações mitológicas, que aqui ocupam o lugar dos dogmas, um perito a consultar em caso de incerteza sobre quaisquer questões de ritual e um adivinho profissional, capaz de assumir a função indispensável de intérprete (o augure dos latinos), uma vez que os deuses falam aos homens uma língua cifrada cujo código não se obtém com um esforço de alma, mas por meio de uma informação exterior que deve ser adquirida. Este personagem, que Platão quis muito finamente bem disposto em favor de Sócrates no início da palestra imaginária, revela-se capaz, naturalmente, de reduzir a nada a acusação de impiedade formulada por Mele tos: depositário, de certa maneira, das “leis e regulamentos em vigor”, acha-se bem colocado para discutir o assunto do ponto de vista do direito, assim como um advogado, com os textos na mão, é o melhor indicado para informar um inquilino sobre os direitos e obrigações de seu proprietário.
Se, todavia, o diálogo descamba para a confusão, não é porque Eutifron seja um astuto ou um imbecil. Nem, tampouco, porque Sócrates saiba o que venha a ser a piedade, dado que ainda a ignora. Mas é porque os dois interlocutores não estão no mesmo plano. Eutifron busca a piedade para o lado dos fatos: é por esta razão, pois, e não porque seja, como já se afirmou, “rebelde às abstrações”, que começa por definir a piedade citando ações piedosas. Sócrates busca-a ao contrário, não sem certa angústia discreta que dá ao diálogo um tom quase comovente, do lado da relação interior da alma com a divindade. Repúdio da mitologia em nome da razão? Aqui o vocabulário do século XIX é completamente inadequado. Não é tanto o conformismo ateniense que Sócrates recusa. O que ele procura é, sobretudo, interiorizá-lo, retomá-lo pela alma, no sentido empregado pelos químicos, quando falam em retomar pela água. O benévolo Eutifron não pode naturalmente compreender esta linguagem nova que o acusado não ousou usar perante os juizes, certo de ser mal interpretado. Daí o caráter paradoxalmente especioso da defesa de Sócrates na Apologia. Creio nos denses, rogo-os e sacrifico-lhes, — mas não creio da mesma maneira que vós, e nisto consiste para vós a impiedade. Afastando-se (“Que jazes, companheiro? vais embora e me deixas cair do alto de minha esperança”), Eutifron abandona Sócrates em face da acusação de impiedade formulada por Meletos-Anytos.