Sócrates, um revolucionário como se deve ser

O MESTRE (cont.)
Excertos de Micheline Sauvage, Sócrates. Agir, 1959 (original em francês: Socrate ou la conscience de l’homme

É um fato inegável que Sócrates, que transforma as almas, não muda os costumes. Assim, a escravidão e a guerra não lhe pareceram absurdas, pois do contrário certamente teria dito aos Atenienses. Não vota acaso pelas mulheres o mesmo menosprezo deferente de seus compatriotas e não partilha com estes da mesma admiração pela cidade “coroada de violetas”, por seu passado, seus heróis e costumes? Aquele que busca a justiça além das ações reputadas justas em geral não deixa de estar de acordo com a opinião corrente a respeito das mesmas ações reputadas justas, tais como vender o próprio inimigo como escravo. Embora procure saber em que consiste a piedade, recomenda, contudo, que se honrem os deuses conforme as leis que regulamentam o culto: “Que cada um venere os deuses segundo o rito de sua cidade”. Conta-se que, certo dia, levantou-se durante uma representação teatral para protestar contra determinada passagem de uma tragédia em que o decadente Eurípedes pregava a indulgência em matéria de conduta, o que é muito possível.

Em suma, um revolucionário como deve ser. Entretanto, não é por preguiça ou hipocrisia. Mas porque a reflexão pode levar Crítias, apaixonado por Euthydemos, a ver que se conduz como um animal, a Antiphon, que forma uma ideia incoerente da felicidade, e a Euthyphron, que é insensato ao acusar o próprio pai; todos estes, convidados a se olharem a si mesmos, devem corrigir uma conduta em desacordo com os princípios que admitiam sem possuir a respeito uma consciência clara; ninguém comete o mal por gosto (o tema socrático, por excelência, conforme a tradição), pois o mal é cegueira, mas nunca um pecado consentido em pleno conhecimento de causa por uma vontade perversa. Todavia, mesmo a reflexão mais lúcida não ordena nunca aos homens que mudem, de repente, sua maneira de sentir e de agir estabelecida e confirmada pelo sentido comum e pela experiência dos antepassados. Para levar a cabo tal programa de vida renovada são necessários princípios novos que o indivíduo só é capaz de encontrar no retorno sobre si. O discernimento e a liberdade, por si sós, são capazes de engendrar apenas a si mesmos. Por conseguinte, ou a reminiscência ou então algum mestre interior: tal é o dilema em que Kierkegaard encerrou hermeticamente a aventura da consciência.

Sócrates, o parteiro, dá à luz homens livres. Pelo fato de ter sido conservador em matéria de costumes, não adiantemos logo que nada foi mudado. Tudo foi mudado, pois ele abriu o caminho para aqueles que, vindo depois, beneficiaram das revelações oferecidas pela História e puderam levar a cabo a revolução socrática, decifrando o sentido completo do enigma de Delfos, proposto desde Chilon, um dos Sete Sábios, à meditação dos homens.

O papel desempenhado por Sócrates neste acabamento é, pelo menos, o da pré-ciência. Protágoras, Pródicos ou Crítias, os sofistas enfim, embora nem todos fossem ímpios, afirmaram e creram que o homem é a medida de todas as coisas. Ao se esboroarem, as crenças tradicionais abandonaram-nos a uma verdadeira solidão donde saíram, conforme o próprio temperamento de cada um, para uma vida digna ou para a vagabundagem. Sócrates, porém, não acredita que o homem seja a medida de tudo, embora este só conte consigo mesmo para decidir. Descobre mesmo pela primeira vez sua qualidade de sujeito absoluto. Todavia, o céu não está vazio. É possível uma busca do deus, embora esta só tenha como garantia e depositária única a consciência. Eis-nos, pois, reduzidos ao daimonion ti, à voz divina que fala, como uma graça, neste devoto de Apoio. Xenofontes, substituindo a advertência sempre inibidora do demônio platônico por uma espécie de tato divinatório, acentua ainda o caráter religioso: “Quando me fio em meu demônio, anuncio a meus amigos a vontade dos deuses, que se realiza sempre, pois jamais meu demônio me mentiu”. Seja como for, podemos discernir neste homem um apelo àquele “deus desconhecido”, cujo altar, três séculos mais tarde, Paulo de Tarso irá descobrir em Atenas, quando vier anunciar um outro evangelho, na própria cidade de Sócrates. O homem não é a medida de todas as coisas, mas o suporte.