Reale (HF1): Sócrates e seus seguidores

Excertos de “Giovanni Reale e Dario Antiseri – História da Filosofia Vol I”

Sócrates e seus seguidores

O discurso de Sócrates trouxe uma série de aquisições e novidades, mas também deixou uma série de problemas em aberto.

Em primeiro lugar, o seu discurso sobre a alma, que se limitava a determinar a obra e a função da própria alma (a alma é aquilo pelo qual nós somos bons ou maus), exigia uma série de aprofundamentos: se ela se serve do corpo e o domina, isso quer dizer que é outra coisa que não o corpo, ou seja, distingue-se dele ontologicamente. Sendo assim, o que é ela? Qual é o seu “ser”? Qual a sua diferença em relação ao corpo?

Análogo discurso pode-se fazer em relação a Deus. Sócrates conseguiu “desfisicizá-lo”: o seu Deus é bem mais puro do que o ar-pensamento de Diógenes de Apolônia e, em geral, coloca-se decididamente acima do horizonte dos físicos. Mas o que é essa Divina Inteligência? Em que ela se distingue dos elementos físicos?

Quanto às aporias do intelectualismo socrático, já falamos delas. Devemos aqui apenas completar o que já foi dito, destacando as últimas aporias, implícitas na doutrina da virtude-saber. É verdade que o saber socrático não é vazio, como pretenderam alguns, dado que tem por objeto a psyché e o cuidado com a psyche e dado ainda que também se cuida da psyche simplesmente despojando-a das ilusões do saber e levando-a ao reconhecimento do não-saber. Entretanto, também é verdade que o discurso socrático deixa a impressão de, em um certo ponto, dissipar-se ou, pelo menos, ficar bloqueado no meio do caminho. E é verdade ainda que, assim como era formulado, o discurso socrático só tinha sentido na boca de Sócrates, sustentado pela força irrepetível de sua personalidade. Na boca de seus discípulos, fatalmente, devia se reduzir através da eliminação de algumas instâncias de fundo de que era portador ou então ampliar-se através do aprofundamento daquelas instâncias, mediante a sua fundamentação metafísica. Contra as simplificações operadas pelas escolas socráticas menores, mais uma vez seria Platão a tentar dar um conteúdo preciso àquele saber, atribuindo-lhe o bem como objeto supremo, primeiro genericamente, mas, depois, tentando dar a esse bem uma estatura ontológica, com a construção de uma metafísica.

Também a ilimitada confiança socrática no saber, no logos em geral (e não no seu conteúdo particular), foi duramente abalada pelo êxito problemático da maiêutica. Em última análise, o logos socrático não está em condições de fazer parir qualquer alma, mas apenas as almas grávidas. Trata-se de uma confissão plena de múltiplas implicações, que Sócrates, porém, não sabe e não pode explicitar: o logos e o instrumento dialógico que se funda inteiramente no logos não bastam para produzir ou, pelo menos,- para fazer com que a verdade seja reconhecida e para fazer com que se viva na verdade. Muitos voltaram as costas para o logos socrático: porque não estavam “grávidos”, diz o filósofo. Mas então quem fecunda a alma e a torna grávida? Essa é uma pergunta que Sócrates não se propôs e à qual, com certeza, não teria podido responder. E, olhando bem, o cerne dessa dificuldade é o mesmo apresentado pelo comportamento do homem que “vê e conhece o melhor” mas, no entanto, “faz o pior”. Embora, colocando-a dessa forma, Sócrates tenha acreditado contornar a dificuldade com o seu intelectualismo, na verdade colocada de outra forma, ele não soube contorná-la, eludindo-a com a imagem da “gravidez”, belíssima, mas que nada resolve.

Uma última aporia esclarecerá ainda melhor a forte tensão interna do pensamento de Sócrates. O nosso filósofo apresentou a sua mensagem aos atenienses, parecendo de certa forma fechá-la nos estreitos limites de uma cidade. Sua mensagem não foi por ele apresentada expressamente como uma mensagem para toda a Grécia e para toda a humanidade. Evidentemente, condicionado pela situação sociopolítica, parece que ele não se deu conta de que sua mensagem ia bem além dos muros de Atenas, valendo para o mundo inteiro.

Por outro lado, ter identificado na alma a essência do homem, no conhecimento a verdadeira virtude e no autodomínio e na liberdade interior os princípios cardeais da ética levava à proclamação da autonomia do indivíduo enquanto tal. Mas somente os socráticos menores é que extrairiam em parte essa dedução e somente os filósofos da época helenística é que a levariam a uma formulação explícita.

Sócrates poderia ser chamado de “Hermas bifronte”: por um lado, o seu não-saber parece indicar a negação da ciência, por outro parece ser uma via de acesso a uma autêntica ciência superior; por um lado, a sua mensagem pode ser lida como simples persuasão moral, por outro lado como abertura para as descobertas platônicas da metafísica; por um lado, a sua dialética pode parecer até mesmo sofística e erística, por outro como fundação da lógica científica; por um lado, sua mensagem parece circunscrita aos muros da polis ateniense, por outro se abre ao mundo inteiro, em dimensões cosmopolitas.

Com efeito, os socráticos menores pegaram uma das faces de Herma e Platão a face oposta, como veremos nas páginas seguintes. Todo o Ocidente é devedor da mensagem geral de Sócrates.

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