Minha impressão é que cada um nos contava uma história, como se fôssemos crianças: um dizia que os seres são três e que, por vezes, entre eles surgia briga, mas quando se tornavam amigos, então havia casamento, filhos e educação da prole. Outros falavam em dois princípios: úmido e seco, ou quente e frio, que faziam casar e morar juntos. Nossa gente de Eleia, desde o tempo de Xenófanes, senão antes, conta sua história como se o que denominamos múltiplo não fosse mais que um. Porém certas Musas jônicas ou sicilianas chegaram posteriormente à conclusão de que seria mais seguro fundir as duas teses e afirmar que o ser é múltiplo e também uno, e que se mantém coeso pelo ódio e pela amizade. Com efeito: sua discordância, dizem as Musas mais tensas, acaba sempre em harmonia, enquanto as mais frouxas relaxam algum tanto esse estado de tensão permanente e afirmam que as duas condições se alternam, ora passando o todo a ser uno, graças ao amor de Afrodite, ora múltiplo e em guerra consigo mesmo, por causa de certa discordância. Em tudo isso é difícil decidir quem está com a verdade ou com a mentira, sobre ser indecoroso lançar alguma pecha em varões de tão elevado conceito e vetustade. Porém o seguinte pode ser afirmado sem a menor ofensa.
Teeteto – Que é?
Estrangeiro – É que não tiveram a mínima consideração com o vulgo, do qual fazemos parte. Prosseguem seu caminho sem perguntarem se os acompanhamos ou se ficamos para trás.
Teeteto – Que queres dizer com isso?
Estrangeiro – Quando algum deles abre a boca para afirmar que existe ou nasceu ou se tornou muitos ou um ou dois, e mistura quente com frio ou imagina combinações e separações, pelos deuses, Teeteto, saberás dizer o que todos eles entendem por essas expressões? Eu de mim, no meu tempo de moço, quando me falavam do que ora nos deixa tão confusos, do não-ser, ficava convencido de que compreendia tudo. Porém bem vês como essa questão agora nos deixa embaraçados.
Teeteto – Vejo, sim.
Estrangeiro – E possível que em nossa alma se passe a mesma coisa com relação ao ser, e imaginamos compreender facilmente o que sobre isso falam, sem nada entendermos do não-ser, quando, de fato, num e noutro caso nossa situação é uma só.
Teeteto – Sem dúvida.
Estrangeiro – O mesmo se diga de todos os termos que admitimos antes.
Teeteto – Perfeitamente.
Estrangeiro – Se estiveres de acordo, deixemos para depois a apreciação da maior parte dessas expressões. Urge examinar o chefe principal, o maioral do bando.
Teeteto – A que te referes? Evidentemente, queres dizer que devemos iniciar nossa investigação pelo ser, isto é, para vermos o que entendem por essa expressão os que a enunciam.