Sof 265e-268c: Produção divina e produção humana

Estrangeiro – Capacidade criadora, se ainda estamos lembrados do que dissemos no começo, é tudo o que for causa de vir a existir o que não existia.

Teeteto – Sim, lembro-me.

Estrangeiro – Todos os animais mortais, e bem assim as plantas que nascem na terra, de semente ou raiz, e todas as substâncias inanimadas que se encontram seu interior, fusíveis ou não fusíveis devemos dizer que tudo isso nasceu por outra influência que não a de alguma divindade, já que antes não existia? Ou aceitaremos a opinião comum, para falarmos como o povo?

Teeteto – Qual opinião?

Estrangeiro – Que a Natureza os gerou em virtude de uma causa natural e destituída de pensamento; ou terá sido gerado por alguma força divina, dotada de razão e de conhecimento, oriunda de Deus?

Teeteto – Talvez por causa da idade, tenho mudado muito de opinião; porém ao ver-te neste momento, suspeito que és inclinado a acreditar que tudo isso nasce de um pensamento divino, conclusão que eu também aceito.

Estrangeiro – Muito bem, Teeteto. Se nós te tomássemos por um desses que de futuro viriam a julgar de outro modo, procuraríamos converter-te à nossa maneira de pensar, assim pelo raciocínio como pela força da persuasão. Porém como percebo que tua natureza dispensa argumentos estranhos e se dirige por si mesma para onde te confessas atraído, abstenho-me de insistir nesse ponto, pois com isso perderíamos tempo inutilmente. Limito-me a afirmar que todas as coisas que atribuímos à Natureza são produto de uma arte divina, e as que os homens compõem por meio. daquelas o são de uma arte humana, e que, de acordo com essa explicação, há duas espécies de arte criadora, a humana e a divina.

Teeteto – Certo.

Estrangeiro – Agora divide também em dois cada uma dessas partes.

Teeteto – De que jeito?

Estrangeiro – Assim como dividiste antes no sentido da largura o conjunto da arte criadora, faze-o agora no sentido do comprimento.

Teeteto – Está dividida.

Estrangeiro – Desse modo obtivemos quatro partes ao todo: duas humanas, que nos dizem respeito, e duas relativas aos deuses e que são divinas.

Teeteto – Certo.

Estrangeiro – Se considerarmos a divisão no primeiro sentido, em cada secção teremos uma parte produtora de realidades, sendo lícito darmos às duas partes restantes o qualificativo de imaginárias. A esse modo, a produção ficou de novo dividida em duas partes.

Teeteto – Torna a falar dessas divisões.

Estrangeiro – Nós e os outros animais e todos os elementos originários das coisas, o fogo, a água e substâncias congêneres, como sabemos, foram produzidas pelo Deus e são obra sua, cada coisa em particular e no conjunto.

Teeteto – Isso mesmo.

Estrangeiro – Para todas essas coisas há simulacros que não são elas mesmas e que as acompanham, também originárias de uma arte divina.

Teeteto – Que simulacros?

Estrangeiro – Os dos sonhos e os que denominamos de dia aparições naturais, como as sombras que se formam quando as trevas tomam conta do fogo ou o reflexo em objetos lisos e brilhantes de duas luzes que se encontram, uma própria para os olhos e outra estranha e que produzem em nossos sentidos uma imagem de efeito inverso da visão ordinária.

Teeteto – São, de fato, as duas obras da produção divina, as próprias coisas e o simulacro que as acompanha.

Estrangeiro – E nossa arte? Não podemos dizer que com a arte do arquiteto construímos a própria casa, e por meio do desenho uma outra que é como um sonho de criação humana para as pessoas acordadas?

Teeteto – Perfeitamente.

Estrangeiro – O mesmo acontece com as demais obras de nossa atividade produtora, que andam sempre aos pares, a própria coisa, digamos, oriunda da arte criadora, e sua imagem que só gera simulacros.

TeetetoAgora compreendi melhor e reconheço que há duas espécies de arte produtiva que, por sua vez, são duplas: ponho numa das secções as produções divina e humana; na outra, a própria coisa e a criação de certas semelhanças.

Estrangeiro – Não esqueçamos de que um gênero da arte imitativa deveria ocupar-se com cópias e o outro com simulacros, se o falso tiver de ser verdadeiramente falso e alcançar por natureza algum lugar entre os seres.

Teeteto – Isso mesmo.

Estrangeiro – É o que ficou demonstrado; por isso, podemos admitir, sem vacilações que se trata de dois gêneros.

Teeteto – Certo.

Estrangeiro – Então, dividamos agora em duas partes a arte dos simulacros.

Teeteto – De que jeito?

Estrangeiro – Uma trabalha com instrumentos; na outra, quem produz o simulacro serve de instrumento.

Teeteto – Que queres dizer com isso?

Estrangeiro – Quando alguém, quero crer, usando de seu próprio corpo, procura imitar tua aparência, ou tua voz com a dele, penso que a essa parte da arte fantástica se dá o nome de mímica.

Teeteto – Isso mesmo.

Estrangeiro – Assinalemos, então, o domínio próprio dessa parte a que demos o nome de mímica; quanto à outra, sejamos práticos e deixemo-la de lado, ficando para terceiros o cuidado de conferir-lhe unidade e de dar-lhe nome adequado.

Teeteto – Sim, assinalemos o domínio de uma e abandonemos a outra.

Estrangeiro – Mas essa parte, Teeteto, também merece ser subdividida. E a razão, vais sabê-la.

Teeteto – Ouçamo-la.

Estrangeiro – Entre os imitadores, uns conhecem o que imitam, outros o fazem sem conhecer. E haverá, porventura, mais radical distinção do que a existente entre a ignorância e o conhecimento?

Teeteto – Não é possível.

Estrangeiro – O exemplo apresentado há pouco é de imitação por conhecimento, pois só poderá imitar-te quem conhecer tua figura e tua pessoa.

Teeteto – Sem dúvida.

Estrangeiro – E que diremos da figura da justiça ou das virtudes em geral? Mas, não há um sem-número de indivíduos que, sem conhecê-la, porém tendo dela apenas uma espécie de opinião, põem todo o empenho em fazer aparecer ó que eles presumem ter no íntimo, imitando-a, quanto possível, por atos e por palavras?

Teeteto – Há muitíssimos, até.

Estrangeiro – E por acaso todos eles falham no empenho de parecerem justos, conquanto em absoluto não o sejam, ou dar-se-á precisamente o contrário disso?

Teeteto – O contrário, exatamente.

Estrangeiro – Importa, pois, declarar que esse imitador é diferente do outro, tal como o ignorante difere de quem sabe.

Teeteto – Certo.

Estrangeiro – Onde iremos, então, buscar a designação apropriada para cada um? Evidentemente, é tarefa por demais árdua, porque nisso de dividir os gêneros em espécies, parece que os antigos sofriam de uma velha e inexplicável indolência que nunca os levou pelo menos a tentá-la; dar essa carência tão acentuada de nomes. De um jeito ou de outro, e embora se no afigure um tanto forte a expressão, para melhor diferença-la daremos o nome de doxomimética à imitação que se baseia na opinião, e a que se funda no conhecimento, mimética histórica ou erudita.

Teeteto – Isso mesmo.

Estrangeiro – Vamos ocupar-nos com a primeira; o sofista não se inclui no número dos que sabem, mas no dos que imitam.

Teeteto – Perfeitamente.

Estrangeiro – Examinemos, então, o imitador que se apoia na opinião, como o faríamos com um fragmento de ferro, para vermos se se trata de uma peça uniforme ou se nalgum ponto revela defeito de estrutura.

Teeteto – Sim, examinemo-lo.

Estrangeiro – Pois em verdade aqui está ele, e bem patente. Entre esses tais, há o tipo ingênuo que acredita saber o que apenas imagina; o outro, pelo contrário, que se deixa arrastar por seus próprios argumentos, não esconde a suspeita e o receio de ignorar o que diante de terceiros ele procura aparentar que sabe.

Teeteto – Sem dúvida, há esses dois tipos que acabaste de descrever.

Estrangeiro – Ao primeiro, então, daremos o nome de imitador simples, e ao outro, o de imitador dissimulado?

Teeteto – Seria de toda a conveniência.

Estrangeiro – E este último gênero, diremos que é simples ou duplo?

Teeteto – Examina-o tu mesmo.

Estrangeiro – Examino e creio perceber dois gêneros. No primeiro, distingo o indivíduo capaz de dissimular em público com discursos prolixos; no outro, o que em círculos mais restritos, com sentenças curtas leva seu interlocutor a contradizer-se.

Teeteto – É muito certo o que dizes.

Estrangeiro – E o homem dos discursos longos, como o designaremos? É estadista ou orador popular?

Teeteto – Orador popular.

Estrangeiro – E o outro, que denominação lhe cabe à justa: sábio ou sofista?

Teeteto – Sábio, não é possível, pois já provamos que ele é ignorante. Mas, por ser imitador do sábio, é fora de dúvida que alguma coisa do nome deste há de passar para ele. E agora me ocorre que de um tipo assim é que podemos dizer com toda a segurança: um sofista acabado!

Estrangeiro – Nesse caso, fixemos aqui mesmo seu nome, como fizemos antes, entrelaçando-o de ponta a ponta em todos os seus elementos?

Teeteto – Perfeitamente.

Estrangeiro – Sendo assim, a espécie imitativa e suscitadora de contradições da parte dissimuladora da arte baseada na opinião, pertencente ao gênero imaginário que se prende à arte ilusória da produção de imagens, criação humana, não divina, desse malabarismo ilusório com palavras: quem afirmar que é de semelhante sangue e dessa estirpe que provém o verdadeiro sofista, só dirá, como parece, a pura verdade.

Teeteto – Perfeitamente.