Sonho de Cipião

Entre os textos de Cícero destaca-se como único por seu alcance religioso, ou melhor dito, filosófico-religioso, o chamado Somnium Scipionis (O sonho de Cipião). Trata-se da narração – posta na boca de Cipião Emiliano – de um sonho, no qual aparece a Cipião seu pai, Cipião o Africano. Do alto, o pai mostra Cartago a seu filho, e vaticina a vitória deste sobre a cidade dentro de dois anos (e posteriormente a vitória sobre Numância). Acrescenta que o filho regressará em triunfo ao Capitólio, e que encontrará uma cidade completamente sublevada. Será necessário, então, aportar a luz da alma, da inteligência e da prudência. Para animá-lo, o Africano mostra a Cipião Emiliano o destino das almas que serviram bem a sua pátria e praticaram a piedade e a justiça. Estas almas moram na Via-Láctea presididas pelo princips deus, ou deus soberano. É um universo magnífico e admirável, dividido em nove esferas, as quais produzem com seus movimentos uma harmonia divina. Na esfera celeste – a mais externa, que circunda todas as demais e onde estão fixadas as estrelas – vive o deus soberano. Sob esta. esfera há outras sete que se movem em sentido inverso ao do céu. No círculo inferior gira a Lua; debaixo dela há o mundo sub lunar, onde não existe nada que não seja mortal e decrépito, exceto as almas dos homens. Estas vivem, na nona e última esfera, a Terra, que não se move e é concêntrica às demais. Agora, para alcançar a piedade e a justiça é mister voltar a vista ao plano superior, às esferas supralunares, onde nada é decrépito ou mortal. A alma se acha ligada por sua parte superior a estas esferas, e somente poderá regressar efetivamente a elas, como sua verdadeira pátria, quando esqueça a caducidade dos bens materiais e das falsas glórias terrenas, ou seja quando se dê conta de que estar encerrada em um corpo mortal não quer dizer que ela mesma seja mortal. A alma imortal move o corpo mortal como Deus move um mundo sob certos aspectos destinados à morte. É preciso exercitar, pois, a alma nas mais nobres ocupações, e as mais nobres de todas são as orientadas no sentido da salvação da pátria. As almas que cumpram esta sublime missão serão recompensadas com a ascensão às esferas celestes, enquanto que as que se entregam aos prazeres dos sentidos permanecerão na superfície da terra e não ascenderão senão depois de serem atormentadas durante séculos.

Discutiu-se muito a origem destas ideias. Alguns autores assinalam que se originam de Posidônio; outros negam semelhante procedência. O quadro de Cícero (com a única exceção do motivo cívico a serviço da cidade) corresponde a muitas das ideias que em sua época foram abrindo caminho, e que têm, por um lado, pontos de contato com as religiões astrais; por outro, pontos de contato com a tendência, a elaborar as concepções platônicas; e por outro, ainda, com uma visão do cosmo como sendo uma grande harmonia, como um templo, no qual habitam como cidadãos as almas virtuosas. Semelhantes ideias exerceram bastante influência sobre autores posteriores, entre os quais se destacou Macróbio.

É mister observar que um dos temas do sonho é a concepção da insignificância da vida individual neste mundo, comparada com a imensidade do cosmo. O tema está igualmente desenvolvido no Livro VI da Eneida (revelação de Enéas a Anquises) e em alguns escritos estoicos (por exemplo, em Sêneca, Ad Marciam de consolatione, XXI).

José Ferrater Mora, Dicionário de filosofia (ed. de 1958)