sophrosyne

No Cármides, através da própria definição da σωφροσύνη como «saber do saber e do não saber» (ἐπιστήμην ἐπιστήμης καὶ ἀνεπιστημοσύνης, 169b) e de toda a discussão em que aporética e enigmaticamente intervém.

NOTA: O caráter platônico desta definição tem sido questionado. Os principais motivos para tal prendem-se fundamentalmente com o fato de ela vir a ser refutada no próprio diálogo, mas também com os argumentos que nele a visam estabelecer e que têm, inegavelmente, uma forma pouco comum. Perante o que ficou anteriormente estabelecido sobre a natureza da refutação em Platão, a primeira razão está longe de ser incontornável ou definitiva; e bem assim a segunda, que só a própria interpretação do diálogo poderia verdadeiramente combater. Julgamos, todavia, que existem alguns argumentos que fortemente sugerem a sua validade. Tais são: 1 — Tal como aqui, a definição de σωφροσύνη como τὸ εαυτόν γιγνῶσκειν é também postulada no Alc. I, 131b, 133c, e no Ti., 72a; para mais, apesar da sua aparente rejeição no Cármides, ela é por diversas vezes recuperada por Sócrates no próprio diálogo como o verdadeiro saber: veja-se as duas formulações do método em 158e-159a e em 160d, bem como a auto-descrição socrática em 166d. 2 — A definição da σωφροσύνη como «ciência de si mesma», embora não seja postulada em nenhuma outra obra, é possibilitada por um largo conjunto de ocorrências perfeitamente análogas àquelas que o diálogo parece refutar. Assim: a) a noção de uma ciência sem qualquer objecto distinto de si mesma é pesquisada no Eutidemo (280d-281d, 291b) e parece realizar-se na alusão da República à ideia de bem, que, a ser saber, seria apenas «saber do bem» (VI, 505ac; mas cf. Smp., 21 lc); b) a noção de uma «visão da visão», sugerida como analogon do saber do saber e aliás não negada no texto, mas apresentada como estranha e virtualmente inacreditável (168ab), embora passível de solução para um «grande homem» (169a), alcança igualmente um paralelo nas diversas referências à «visão da alma», que vê o seu congénere ou afim (Phd65b-67b, 79ae), que se une a ele (Smp., 212a, R., VI, 490b) ou se lhe assimila (Tht., 176ac, Ti., 90ad; cf. Phd., 83b-84b, R., VI, 500bc); do mesmo modo, o «movimento do movimento» reaparece no Phdr., 245e ss, no Ti., 89c, e nas hg., X, 894c, 895e-896a; c) a aporia do maior e do menor, tomada como definitiva em 168e, pode encontrar esclarecimento na relação senhor/escravo interna ao σώφρων, tal como é definida na R., IV, 430e-431b, onde se detecta igualmente o paradoxo de uma duplicidade contraditória, fazendo-se então intervir a dupla natureza da alma para justificar uma tal contradição; o mesmo sucede com as relações «superior a si mesmo» e «inferior a si mesmo» que dão origem à discussão das Leis (1, 626d-627c) e que virão a ser enquadradas na metáfora dos títeres (644d-645c), onde precisamente se justifica a possibilidade de uma coexistência, no mesmo, daquelas duas relações opostas. 3 — A descrição do σώφρων, tal como Sócrates a desenvolve em 167a («só o próprio σώφρων se conhecerá a si mesmo e será capaz de examinar a fundo o que precisamente sabe e o que não sabe …»), embora negada na sua possibilidade pelo debate posterior, é muito claramente a descrição do próprio Sócrates, quer pela sua caracterização habitual, quer pela própria caracterização que Sócrates traça de si mesmo no momento exactamente anterior, ao declarar que o empenho que coloca na refutação se deve unicamente ao intuito de «examinar a fundo o que digo, temendo acreditar que sei algo que de fato não sei» (166d). 4 — Finalmente, toda a aporia em que o diálogo finalmente desemboca é posta entre parênteses pelo próprio Sócrates, ao considerar que ela se deve apenas à sua «má condução» e que, ao contrário do que foi estabelecido, é necessário acreditar que «a σωφροσύνη é um grande bem e que, se tu a possuis, és venturoso « (175e). Para a validação desta definição, veja-se, no entanto, também, com variadas soluções: Friedländer, Plato, II, Ch. IV; Grube, Plato’s Thought, p. 219; Moreau, La construction de T idéalisme platonicien, Paris, Boivin et C., 1939, pp. 119-133; Santas, Socrates, n. 10, p. 196, e p. 202; Μ. H. Cohen, «The Aporias in Plato’s Early Dialogues» (Journal of the History of Ideas, 23, 1962, pp. 163-174), p. 168; Irwin, Plato’s Moral Theory, p. 88; Kosman, «Charmides’ First Definition», pp. 215-216; Desjardins, «Why Dialogues? Plato’s serious play», p. 118.