Tratado 53 – A alma idêntica ao ser-alma não pode ser o sujeito de nenhuma paixão (Aubry)

L’âme identique à l’être-âme ne peut être le sujet d’aucune passion (Enéada I, 1, 2, 13-25).

Da identidade da alma à sua essência, concluiremos que ela é impassível. É a segunda hipótese que continua a ser desenvolvida, mas o tom muda: a secura quase escolástica do raciocínio anterior é substituída por uma série de perguntas retóricas. Curiosamente, a primeira hipótese, falsa, segundo a qual a alma era uma substância composta, foi tratada com mais rigor e a sua coerência foi realçada. Aqui, já não se trata tanto de deduzir como de persuadir, de demonstrar como de mostrar. A impassibilidade da alma já foi deduzida da sua simplicidade (2, 11): é preciso agora manifestá-la. E a própria evidência desta manifestação deve ser suficiente para falar da sua verdade.

Ela deve, talvez ainda mais, suscitar o desejo desta impassibilidade: o exercício de “psicologia negativa” que Plotino empreende aqui, negando à alma todas as paixões, visa, paradoxalmente, provocar um afeto. Já não se trata apenas de desenvolver uma hipótese, de examinar uma possibilidade lógica, mas de trazer à luz (ou de expor, como a estátua coberta de ferrugem, o ouro na lama) uma possibilidade real: de nos recordar que existe uma outra vida, livre de carências e de sofrimentos, enterrada mas acessível, inconsciente mas da qual podemos tomar consciência. Em suma, trata-se de suscitar uma reminiscência e, com ela, o desejo de transformar o traço e a memória em presença e atualidade.

Da alma, portanto, vamos subtrair aquelas paixões cuja enumeração abriu o tratado: o medo, para começar, definido pela Academia como “a expectativa de um mal1.

Se é citado em primeiro lugar, é porque parece ser a paixão fundamental, o próprio correlato da receptividade e da passividade: só pode ser objeto de medo aquilo que é capaz de “receber <algo> do exterior” e de “ser afetado” (2, 14-15). Ora, a alma simples é pura forma e puro ato: imaterial, não admite nenhuma passividade; atual, não sofre nenhuma falta. Só a alma ligada a um corpo, ou “composto”, pode experimentar o medo, pois o que é essencialmente temido é, escreve Plotino noutro lugar, “a dissolução do composto <de alma e corpo> (τὸ σύνθετον)” (51 (I, 8) 15, 15-16).

Tanto quanto o medo, a ousadia deve ser negada da alma (2, 15-16): as paixões, como dissemos, andam aos pares, dão-se em oscilação e instabilidade. Por isso, o medo e a ousadia são descritos conjuntamente no Timeu como “αφρονε ξυμβούλω”, “conselheiros acéfalos” (69 d). Aristóteles, do mesmo modo, vê neles dois excessos em relação àquela medietè que é a coragem; o imprudente peca por excesso de confiança em si mesmo e tem apenas a aparência de coragem: por detrás do homem ousado esconde-se, na maior parte das vezes, um cobarde (EN III, 9, 1115 a 10, 1115 b 30). A alma, porém, se estiver separada do corpo, também não tem a virtude da coragem: esta, de facto, está ligada ao “coração”, ao thymos. Nela, como na prudência, na justiça ou na temperança, Plotino vê apenas uma virtude “civil”: uma daquelas virtudes a que se referem as primeiras linhas do parágrafo (2, 5), e que aparecem como o correlato das paixões, pressupõem a existência do corpo como matéria a dominar e a ordenar (19 (I, 2), 1, 16). Não é nestas paixões que o Teeteto nos exorta a imitar o divino: Deus (ou a Inteligência) não tem necessidade de coragem “pois não tem nada a temer, nada existe fora dele” (ibid., 1, 11-12).

Não mais do que o medo ou a audácia, a alma não conhece desejos. Mantém-se aqui o plural, e a descrição é a de um fenómeno mecânico, absurdo tanto quanto necessário, de uma pura alternância, não de carência e de satisfação, mas de esgotamento e de reposição (2, 16-18): são os desejos do corpo que estão aqui em causa, e não esse desejo próprio da alma que aprenderemos mais tarde (132) a distinguir (5, 27). Um corpo desejante é, sem dúvida, um corpo animado: o Filebo já sublinhava que não há desejo puramente corpóreo, uma vez que o corpo, para desejar o vazio ou a reposição, tem de se lembrar do estado em que não está (35 d); e Plotino repete noutro lugar que é a alma que deseja, embora para e com o corpo (28 (IV, 4) 21). Mas se é verdade que o corpo deseja apenas através da alma (e mesmo, deveríamos dizer, deseja apenas para a alma, pois a verdade do desejo do corpo é que ele não quer ser um mero corpo, que sofre da sua incompletude essencial), é falso que a alma deseje para o corpo: este último, de fato (isto é explicitado pela primeira vez), é radicalmente “outro” que a alma (2, 18).

Se a alma não participa nos desejos do corpo, é porque o próprio corpo não é para ela o objeto do desejo: ela não procura, escreve Plotino, nem “mistura” nem “suplemento” (2, 19-20). A alma essencial é simples, e como tal é pura forma e puro ato: não pode, portanto, aspirar à “mistura”, ou à composição, pois é em si mesma atual e completa. Longe de a aumentar ou completar, qualquer suplemento só a poderia diminuir: só se pode acrescentar o não-ser a um ser perfeito. Mas Plotino pensa no corpo precisamente como um excedente decrescente, uma adição subtractiva. Ao ganhar um corpo, a alma perde algo de si própria; a individuação (ou melhor, como voltaremos a referir, a particularização) não é mais do que esta perda: ao deixarmos o ser universal, tornamo-nos “alguém”; encontramo-nos fechados nos estreitos limites de um corpo e de uma situação. Todo o “isto é o que eu sou” deve ser entendido como “eu não sou mais do que isto” (cf. 23 (VI, 5) 12, 15-23).

É por isso que, para a alma, desejar um suplemento seria “esforçar-se por deixar de ser o que é” (2, 20-21). Seria lutar não pela sua essência, mas pela lacuna, pela inadequação que a composição implica. A fórmula sugere, ao contrário, a ideia, explicitada logo a seguir, de uma espécie de conatus da alma, uma perseverança na essência. É o desejo do seu próprio ser que impede a alma de desejar um corpo: “a alma”, escreve Plotino noutro lugar, “é como é da sua natureza desejar ser, se não tiver desejos nem paixões; e não tem nenhum, quando não sofre nem adição nem subtração” (6 (IV, 8) 2, 17-20).

Livre de desejos e de paixões, a alma essencial é também inacessível ao sofrimento (2, 21-22). Ela não é afetada por nada e não pode sofrer por nada, na medida em que não está em relação com nada. Pela primeira vez, deduz-se aqui uma qualidade positiva da simplicidade: a autossuficiência — “o que é essencialmente simples é autossuficiente, permanecendo como é na sua própria essência” (2, 22-23). O simples, na medida em que é adequado à sua essência, é por si mesmo completo; tem apenas de perseverar no seu ser, ainda que, como vemos aqui, esta perseverança não deva ser entendida como um esforço, ou uma tendência, mas como uma permanência. A alma simples não tem de aumentar o seu ser: mantém a sua perfeita identidade consigo mesma (2, 24-25).

Por isso, Plotino acrescenta que “não admite nada, nem mesmo um bem” (2, 24). Mas é apenas um bem relativo que deve ser negado: não é o Bem em si mesmo. Pelo contrário, o desejo de o ter deve ser-lhe atribuído, mesmo que estas poucas linhas, que visam sobretudo demonstrar a sua autarquia, não o façam. A alma plotiniana não é, como se poderia pensar ao ler estas linhas, uma interioridade fechada, um ser parmenideano, venerável e imóvel. Já vimos que ela “recebe” algo das realidades que a precedem, e que, ao mesmo tempo em que é ato e potência para as realidades sensíveis, é ela mesma matéria e potência para o Intelecto. Isto aplica-se, a fortiori, à sua relação com o próprio princípio do Intelecto: o Bem Único. A alma não é, como todo o ser, senão um efeito da sua potência infinita, e é portanto constituída, no seu próprio ser, pelo desejo daquilo de que provém. As fórmulas que sugeriam a sua perseverança em si mesma, ou a sua adequação a si mesma, devem ser relidas neste sentido: para Plotino, de fato, nenhum ser, com exceção do Primeiro Princípio, é perfeitamente adequado a si mesmo. Os seres derivados, por outro lado, encontram a sua identidade apenas na “parte do bem” que os excede2. Ele só é verdadeiramente ele mesmo naquilo que está para além dele. O eu próprio não é a apropriação do que já se é, mas um esforço em direção ao que ainda não se é. Assim, o autêntico desejo do eu é, na verdade, um desejo daquilo que é superior ao si.

Este desejo, porém, não é um esforço doloroso: a alma, como sublinhava Plotino, não sofre. Não faz sentido falar de sofrimento espiritual; não há patologia do espírito, como o nosso texto esclarece. Se, noutro lugar, as imagens evocam, fazendo eco a Platão, a angústia da alma “cheia de pensamentos” e “cheia de dores de parto” (49 (V, 3) 17, 15-17), elas não se aplicam à alma essencial, mas à alma ainda ligada ao corpo, que discute e raciocina. Ora, tal como as paixões, a atividade discursiva deve, como veremos agora, ser negada pela alma separada. (Aubry53)

PLOTIN. Plotin. Traité 53: [Ennéades] I, 1. Tradução: Gwenaëlle Aubry. Paris: les Éd. du Cerf, 2004.

  1. Cf. Platão, Laques, 198 b; Protágoras, 358 d; Fédon, 68 d. Ver também Aristóteles, Ética a Nicómaco, III, 6, 1115 a10, para quem o medo é o objeto de todos os males, sejam eles a pobreza, o desprezo, a doença, a falta de amigos ou a morte 

  2. Cf. Tratado 38, 27, 7 f., com o comentário de P. Hadot, pp. 305-307.