Ullmann: Matéria em Plotino

O que dizer da matéria?

A palavra matéria1 Plotino a entende de três maneiras:

1) como kósmos noêtós, no Noûs, é denominado matéria inteligível;

2) como matéria invisível, sem grandeza e, por conseguinte, imperceptível pelos sentidos, traduzida como subjectum quoddam et susceptaculum specierum2 por Ficino;

3) como mundo corpóreo (material), sensível, que é uma cópia, ou seja, uma imagem – “a mais bela imagem do mundo inteligível”3.

Em sua famosa polêmica antignóstica, Plotino revigorou a convicção acerca da positividade do mundo físico. Paradoxalmente, ele afirma que a matéria é o mal. O que significa isto? Significa que, depois dela, não é possível outra coisa4. Talvez mais claramente: em oposição ao Bem (Primeiro Princípio), do qual todos os entes dependem e que todos desejam, e de nada necessita, o mal pode ser definido como o informe (aneídeon), o eternamente deficiente, o indeterminado, completa passividade, pobreza total. Esta é a essência do mal5. Aquilo em que inerem as figuras, as formas, os limites dos entes, aquilo é o primeiro mal, o mal absoluto6. Bem e mal, neste caso, andam de mistura7. No universo corpóreo, sensível, material, o homem representa um “espetáculo divino” (daimónia ópsis)8. Sem temor de errar, podemos dizer que em Plotino se encontra a mais bela elaboração, no pensamento antigo, da realidade do homem e do seu destino sobrenatural, atingível pela epistrophê ou retorno ao Uno. O homem semelha um Ulisses desejoso de voltar à pátria9.


  1. “Ovviamente, in confronto con l’Uno, con lo Spirito e con 1’Anima, la matéria non può essere concepita come una própria ‘ipostasi’, giacché ad essa non spetta per se stessa né un essere delimitato identificabile né una forma analoga alie altre forme specifiche, o una azione autooriginaria” (BEIERWALTES, op. cit., p. 44). 

  2. “La matéria es concebida fundamentalmente como privación, pura potenciali-dad informe, no ser, sustrato y receptáculo de formas, impasible, sólo aprehen-sible por médio de un ‘razionamiento bastardo’” (SANTA CRUZ, Maria Isabel, op. cit., p. 17). Contrariamente ao Uno que é perfeitíssimo, a matéria apresenta-se negativa, como pólo oposto à primeira hipóstase. Dir-se-ia que a matéria sensível constitui a última franja do ser para além do qual nada mais existe. 

  3. En. II, 9, 4, 27. 

  4. Embora um pouco longo, é digno de leitura o seguinte texto: “At the bottom of the Plotinian hierarchy lies matter. Plotinian matter is like the One in that it permits no positive characterization, but this is for exactly the opposite reasons. The One is, one might say, so full, so perfect, that it eludes any positive description. Matter, on the contrary, is such on account of its utter privation, or lack of being: it is sheer potentiality. Matter in Plotinus’ system is the receptacle of immanent bodily forms, such as colours, shapes and sizes. (…) Matter itself is not subject to change but underlies change: as Forms come and go matter remains unaffected. It is as such imperceptible, but reason convinces us of its existence as a purely negatively characterized substrate of forms” (EMILSSON, Eyjólfur Kjalar, Plotinus. In: ROUTLEDGE ENCYCLOPEDIA OF PHILOSOPHY (London and New York, 1998), p. 459). 

  5. En. I, 8,3, 13-16. 

  6. Cf. path:/Eneada-I-8-35|En. I, 8, 35-40. 

  7. Evidentemente, trata-se aqui do bem e mal em sentido ontológico. No tocante ao mal moral, é mister observar que, na Bíblia, o mal, antes do mais, diz respeito ao pecado dos protoparentes com as consequências para toda a humanidade: a natura lapsa sed non corrupta.
    Entre os gregos, a noção de pecado, em sentido moral, já é expressa nos famosos versos da Odisseia 1, 32s de HOMERO: “Ai! Como nos acusam sempre os mortais a nós deuses! De nós vem o mal, dizem, enquanto eles mesmos se causam os sofrimentos por seus próprios crimes contra o destino”. Meridianamente clara é a ideia de hamartía, em PLOTINO, por exemplo, na path:/Eneada-1-1-11|Enéada I, 1, 11, 10: “E os animais, como possuem a vida? Se, como se diz, há neles almas humanas que pecaram…” (hamartoúsai é o verbo empregado). 

  8. En. III, 2,3, 16, 17

  9. “La patria (patrís) è per lui (Plotino) lo Spirito e l’Uno, il luogo ‘proprio’, conforme alia sua essenza” (BEIERWALTES, op. cit., p. 39).