Ferreira da Silva(Transcendência) – Orfeu e a origem da filosofia

O problema da origem da Filosofia é, em última análise, idêntico ao das condições que permitiram ao homem confeccionar uma concepção do mundo autônomo e livre, a partir de um poder de inspeção que residiria em seu íntimo. Se antes o homem estava entregue a uma imagem da vida e das coisas sobre a qual não podia reoperar, ou seja, se antes o homem encarnava unicamente as possibilidades míticas, vivendo como um súdito das potências religiosas, com o surgir da atividade livre do pensamento, a consciência se destacou desse invólucro e passou a olhar desembaraçadamente as coisas. Portanto, com o aparecimento do pensamento racional cumpriu-se o trânsito do mito ao logos, da filomitia à filosofia. Essa concepção, mais generalizada e comum, da questão das origens do fazer filosófico, é consagrada pelos manuais e tratados de história da Filosofia e pela historiografia que fez época no Ocidente. A ideia de uma evolução do pensamento de uma fase teológica, passando por um interlúdio metafísico, para desembocar numa culminância racional é um dos preconceitos que o positivismo instalou na alma do homem atual. Conceber a história do espírito como um progresso retilínio, como a afirmação de uma ideia do melhor, constituiu – como afirma Eudoro de Sousa – uma característica “não apenas do grave positivismo comteano, novecentista e francês, que ditou a lei dos três Estados, mas daquele outro, sutilissimo, nuvem que paira obscurecendo o céu, acima do pensamento histórico, de todos os séculos e nações”. A importância desse trabalho de Eudoro de Sousa, que aliás faz parte de um trabalho ainda inédito denominado “Orfeu e os Comentadores de Platão”, é de romper totalmente com essa concepção positivista e progressista da história do pensamento humano. Para o nosso autor, a filosofia antiga foi a filosofia da religião, nunca tendo aquela filosofia ultrapassado a “mitologia sub-liminar” que a acompanhou durante todo o seu desenrolar. O trânsito da filomitia, isto é, do momento teológico-religioso, para a filosofia, não foi um fato pontual do passado, que assinalasse a irrupção da filosofia: “o pensamento grego se nos revela sempre no trânsito da filomitia para a filosofia”. A questão de uma origem do pensamento filosófico deve levar-nos a uma nova acepção da ideia de origem, compreendendo essa como algo que está no começo, no meio e no fim. A origem ultrapassa o próprio originado, de tal forma que assistimos no fim do paganismo, entre os neoplatônicos, a um estranho regresso da consciência filosófica à representação mito-poética do mundo. Do ponto de vista do autor, entretanto, não houve qualquer regresso, desde que o mundo religioso pagão constituía o background e a fonte poética donde fluíam os filosofemas helênicos. A mitologia antiga foi uma mitologia que “devia vir a ser” uma filosofia, tendo em si as potencialidades desse avatar e as investigações germinais dessa concepção das coisas. Podemos, no entanto, indagar qual das instituições religiosas, de maneira mais forte, teve o [256] poder de suscitar o drama filosófico. Segundo Eudoro de Sousa, é na teologia órfica e na experiência do mundo decorrente do orfismo que podemos localizar o ponto de radicação do enunciado filosófico. “Orfeu seria como uma chave da cifra. Teólogo, poeta, hierofante e porque o mais músico, o mais filósofo, simbolizaria ele, não a história da filosofia, mas a fenomenologia do pensamento filosófico da Grécia. Sobrepõe-se na verticalidade da consciência, e por isso se alinham, na horizontalidade da história, as expressões do mesmo anseio por um saber acerca do deus ou dos deuses, que na Grécia antiga é o mesmo que o saber acerca do universo e do homem”.