Eudoro de Sousa: Xenófanes e o “Motor-Imóvel”

A fulgurante exposição de Jaeger merece dois reparos. O primeiro é que só um excessivo entusiasmo pode responder pela relação direta entre Xenófanes e Aristóteles, quanto ao « motor imóvel » — cujos pré-requisitos nos parecem todos contidos na teoria aristotélica do movimento; acontece, apenas, que o Estagirita, como seu Mestre, tem de recorrer à metáfora, talvez malgrado seu, no momento em que alcança os mais elevados cimos da especulação. O segundo é que as estátuas e pinturas representando a majestade dos deuses na solene entronização, não são propriamente contemporâneas do filósofo-poeta de Cólofon: toda a ambiência mediterrânea conhece tal representação, que hoje sabemos ascender aos tempos mais remotos que a arqueologia atingiu, por exemplo mais espantoso, em Çatal Hüyük (cerca de 6000 a. C.), onde encontramos o pequeno grupo de argila, reproduzindo a Deusa-Mãe em seu trono, ladeada por leões (ou panteras), protótipo da Reia-Cibele anatólica, tão difundida na mais Baixa Antiguidade. Aliás, através de toda a multimilenar história da cultura mediterrânea, concorrem pari passu liberdade e contenção do movimento, como formas arquetípicas da divindade. Mas, cingindo-nos à Grécia, não esqueçamos que Xenófanes morreu no segundo decênio do século V, por conseguinte, muito antes que Fídias consagrasse plasticamente a solenidade hierática de um repouso transcendente, na Atena da Acrópole e no Zeus de Olímpia. Abstraindo, pois, da exemplaridade universal da plástica, não parece absurdo pensar que certo «pré-eleatismo» em Xenófanes fosse responsável pela nova feição da estatuária religiosa na época de Fídias. Se esta, por sua vez, antecipa ou não o conceito aristotélico de «motor imóvel», é questão que temos de deixar em aberto, aliás, sem prejuízo da sequência do presente ensaio. O pensamento filosófico da Grécia nunca aplanou o caminho para um monoteísmo absoluto e intransigente, como o dos livros proféticos de Israel; serviu, é certo, para defendê-lo, mas só depois que prevalecesse a religião que partira do ponto-limite que a filosofia grega se esforçava por alcançar. O frg. 23 de Xenófanes não deixa lugar para sérias dúvidas: «Um só Deus, o supremo entre homens e deuses, diferente dos mortais na forma como no pensamento», situa-se naturalmente ao lado do Indiferenciado de Anaximandro, cuja existência, bem longe de excluir a dos entes diferenciados, traz, antes, em si, a razão da existência desses mesmos entes, e, entre estes, encontram-se, evidentemente, os deuses que aos homens se identificam «na forma como no pensamento». O mais notável, nesta linha de considerandos, é a antecipação de Parmênides; pois os frgs. 14-16 também expressam a ideia de que a convenção humana, que, por via do erro, dá origem ao mundo empírico (Parmênides), é a mesma que promove a crença na multiplicidade e diversidade dos deuses. (Eudoro de Sousa, “Horizonte e Complementaridade”)

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