2. Aspectos temático-estruturais

Excertos de “O Timeu de Platão: mito e texto”, por Rodolfo Pais Nunes Lopes

2.1 Antecedentes

O projeto do Timeu consiste, como dissemos, em formular uma proposta de constituição do mundo sensível e, posteriormente, dos seres que o habitam, com particular evidência para o homem. Considerando que este será o eixo temático em torno do qual gira toda a narrativa, é forçoso que o diálogo seja contextualizado num movimento que começara nos filósofos pré-socráticos, cuja principal preocupação era, precisamente, fornecer uma descrição do mundo sensível; trata-se da tradição a que chamamos “Peri physeos”. Contudo, partir deste axioma para ler o Timeu poderá colocar em risco o seu valor filosófico dentro do sistema platônico, já que a sua esfera de ação se situa no plano do sensível, consequentemente, do opinável e do falso, pois trata-se de analisar o mundo que temos diante dos olhos. De fato, o descrédito que Platão sentia por aquela tradição de obras sobre a natureza é bastante evidente em vários passos dos seus diálogos; por exemplo, no Fédon, Sócrates confessa que ficara bastante desiludido ao ler o livro de Anaxágoras por o autor enveredar por uma interpretação materialista, já que via nas forças naturais o princípio de causalidade que criou e mantém o Universo; ou nas Leis, onde Platão traça um percurso dessa tradição Peri physeos, apontando-lhe todos os defeitos que lhe merecem, ligados principalmente no fato de aquelas investigações estarem presas ao mundo do sensível e, por isso, impassíveis de constituírem conhecimento estável. Por outro lado, a crítica de Platão a esta tradição assume ainda outros contornos, ao comparar aqueles filósofos, a que chama physikoi, com os próprios sofistas, dirigindo a ambos o mesmo tipo de críticas, à luz dos mesmos pressupostos, por considerar que partilham das mesmas deficiências epistemológicas. Com efeito, ainda que nos possa parecer um pouco exagerada a atitude de Platão perante aquele tipo de tratados, teremos que concordar que aquelas obras sobre a natureza se limitavam a descrever os elementos do mundo natural, sem que procurassem fornecer qualquer explicação para além dele; isto é, não tinham quaisquer aspirações metafísicas. Deste modo, o Timeu surge como uma resposta a esta ineficácia que Platão vê nos tratados dos seus antecessores, inscrevendo-se, portanto, nessa tradição como um ponto de viragem e jamais como um marco de continuidade, embora, como veremos, lhe deva muitos elementos.

Entre os vários pensadores pré-socráticos de que Platão retira variadíssimos dados, doutrinas ou teorias que (re)formula no Timeu, é sem dúvida Empédocles aquele que exerceu uma influência mais forte em Platão, particularmente na composição deste diálogo, ao passo que a presença dos restantes apenas se manifesta de um modo pontual ou mesmo casual. Para além das óbvias semelhanças entre os quatro elementos do Timeu e as “raízes” (rizomata) de Empédocles, cuja relação implica uma abordagem mais aprofundada, há inúmeros pontos de contato entre estes dois autores, entre os quais poderemos citar alguns exemplos. Contudo, como veremos, é incorreto supor que Platão tenha simplesmente decalcado esses dados, doutrinas ou teorias, pois, na maior parte dos casos, essa importação implicou uma evidente recriação que se esclarece num ponto fundamental em que as duas concepções cosmológicas se distanciam, o qual dependerá precisamente do carácter inovador do Timeu em relação à tradição em que se inscreve; ao contrário de Empédocles, o texto de Platão evidencia uma clara preocupação metafísica materializada na distinção entre uma dimensão pré-cósmica e outra pós-criação.

No passo em que Timeu diz que o mundo foi constituído a partir dos quatro elementos e posto em harmonia através da proporção, para que, como sumo fim, obtivesse amizade, é muitíssimo convidativa a coincidência entre este termo e a Philia de Empédocles, pela qual enveredam alguns comentadores. No entanto, deveremos ter em conta que, ao passo que neste autor, se trata de uma força dinâmica que, de certo modo, unifica as raízes, no texto de Platão é claramente um resultado ou objetivo estático em que culmina (ou deve culminar) um processo criativo; ou seja, ainda que estejamos perante o mesmo conceito, cuja formulação nos mesmos moldes semânticos nos permitirá esboçar uma relação sobre o modo de funcionamento ideal do mundo, convém ter em conta que cada um deles tem implicações de ordem pragmática muito distintas: um é meio ou instrumento (no caso de Empédocles), outro será fim ou resultado (no caso de Platão).

Ainda assim, há outras ocasiões em que, embora crivadas por um processo de adaptação, as doutrinas do primeiro se espelham no segundo. Ao descrever o corpo do mundo como uma esfera, Timeu evoca claramente a esfera de Empédocles; muito embora a daquele resulte de um processo criativo, enquanto que a deste se situa numa fase pré-cósmica, as semelhanças são evidentes, particularmente a nível vocabular: tal como a esfera do pré-socrático, o mundo de Timeu é único, esférico, razão pela qual não teria necessidade de membros e todos os pontos da sua superfície estavam a igual distância do centro. Embora, por vezes, as palavras utilizadas não sejam exatamente as mesmas, é bastante evidente que ambos se situam num mesmo plano semântico, insistindo, por outro lado, a caraterização nos mesmos pormenores e, inclusivamente, no mesmo princípio geométrico: se a forma é esférica, todos os pontos da superfície serão equidistantes do centro.

De um ponto de vista estrutural, a cosmologia do Timeu produz um mundo bastante próximo do que descreve Empédocles, principalmente no que concerne ao modo como o seu equilíbrio é garantido. Quando o Demiurgo fabrica a alma do mundo, fá-lo através de uma mistura em que entram as naturezas do Outro e do Mesmo, às quais atribui dois movimentos distintos, contudo, complementares:

Fez com que o movimento do Mesmo se orientasse para a direita, girando lateralmente, e que o do Outro se orientasse para a esquerda, girando diagonalmente (…)

Tal como acontece com o Amor e a Discórdia de Empédocles, que atuam com os elementos de um modo diametralmente oposto promovendo o intercâmbio cíclico entre si, é a concomitância dos movimentos contrários de entidades igualmente contrárias como o Mesmo e o Outro que garantem o equilíbrio do mundo natural; a colocação destas naturezas na órbita da alma do mundo, cuja função primordial será governar o seu corpo, garante-lhe essa função decisiva. É evidente que poder-se-ia admitir que esta noção de equilíbrio enquanto negociação pacífica de forças opostas tenha outra matriz que não a de Empédocles – por exemplo, Heráclito –, ou mesmo, que se trata de uma concepção transversal que não pode ser identificada com nenhum autor em particular. Contudo o carácter estrutural que a convivência destas forças assume no equilíbrio global do mundo, pois não se trata de um princípio que afeta várias entidades como acontece em Heráclito, aliado ao fato de essa relação ter como sumo fim a Philia, como dissemos anteriormente, far-nos-á reconhecer a estreita ligação.

A par de Empédocles, a outra grande influência na composição do Timeu foi o Pitagorismo. Ela é de tal modo acentuada que, durante a Antiguidade, alguns comentadores neoplatônicos acreditavam que Platão se baseara na obra TIMAIO LOKRO PERI PSYCHAE KOSMO.O para compor o diálogo, sendo aquela da autoria do filósofo pitagórico Timeu de Lócride; embora hoje se saiba que, de acordo com um fragmento que dela restou, se trata apenas de uma versão da obra de Platão em Dórico, datada do século I d.C., esta curiosidade é bem ilustrativa de quão acentuada é a presença do Pitagorismo no Timeu.

Os conceitos, teorias ou doutrinas desta escola filosófica presentes no diálogo são muitíssimo variados e numerosos, de tal forma que, se, por um lado, há que delimitá-los a um conjunto de exemplos ilustrativos, por outro lado, teremos também que colocar num plano distinto aqueles elementos que influenciam a própria estrutura do diálogo.

Ao primeiro grupo pertence, por exemplo, a teoria sobre o desejo amoroso formulada no final do diálogo que se inscreve no debate sobre a origem do esperma e a natureza da medula, cujo esboço se começara a traçar nos finais do século VI a.C., e que Platão parece desenvolver à luz da hipótese encefalo-mielogênica defendida pelos Pitagóricos. Fora da fisiologia, já no âmbito da simbólica astronômica, é também pitagórica a concepção da terra como astro central que serve de guarda do Universo, ou ainda, na estereometria, a concepção do corpo do Universo como um dodecaedro. Mas, como dissemos, estes são aspetos pontuais.

A um outro nível de manifestação, a influência pitagórica no Timeu assume contornos que ultrapassam em muito a referência breve ou o eco isolado, contribuindo de uma forma decisiva para a montagem da estrutura principal do diálogo, o que, na verdade, era já reconhecido pelos comentadores antigos. Diz Proclo, no seu comentário ao Timeu, que, tal como pensam outros autores – refere-se, muito provavelmente, a Iâmblico, cuja obra De Vita Pythagorica tem por principal finalidade demonstrar a subordinação das doutrinas de Platão a Pitágoras –, considera que o proêmio, o qual, por um lado, estabelece os axiomas à luz dos quais se desenvolverá o discurso principal e, por outro, resume de forma muito sintética o essencial do que vai dizer, como que anunciando-o, consiste numa preparação simbólica para a exposição propriamente dita, como era costume dos Pitagóricos.

Para além de definir a estrutura, entendendo este conceito como a dispositio dos assuntos, a influência pitagórica funciona também como uma âncora teórica a que toda a exposição se fixa. Como sabemos, o conteúdo e a orientação da física pitagórica tinham um carácter profundamente teológico; isso, por si só, seria suficiente para que Platão adaptasse este modelo ao seu sistema filosófico, na medida em que também este tem um sentido teológico. Contudo, mais do que adaptar, o filósofo preferiu incluir essa perspetiva e promovê-la a parte integrante, criando aquilo a que podemos chamar “uma física pitagórica de Platão”. Ao tornar a sua filosofia natural teológica, tem a possibilidade de cumprir o principal objetivo do diálogo que é dar a conhecer o processo de constituição do mundo, ou seja, revelar aos homens aquilo que se situa na esfera do divino. Ora, para estabelecer esse contato entre divino e humano, seria imprescindível esta vertente teológica, quase ritual – lembremos que Timeu invoca os deuses antes de iniciar o seu discurso e torna a invocá-los novamente quando tem necessidade de forjar um novo começo à narrativa aquando da introdução da chora – e Platão viu nos ensinamentos do Pitagorismo essa preciosa ferramenta, pois combinavam o saber físico com a atitude teológica, que garantia à sua filosofia ambas aquelas orientações, verdadeiramente imprescindíveis para o caso particular deste diálogo.

Essa vertente religiosa que determinará a orientação teológica deverá ser procurada um pouco para além de Pitágoras: nos Mistérios Órficos. Como observa o próprio Proclo, em Theologia Platonica, Pitágoras recebeu de Aglaofemo, um iniciado de Orfeu, os rituais e Platão recebeu de Pitágoras os escritos que encerravam este tipo de conhecimento. É, portanto, por intermédio de Pitágoras que Platão tem acesso às ferramentas teóricas órficas que lhe permitirão sondar os procedimentos divinos pelos quais o mundo e o homem foram constituídos e partir do que tem diante dos olhos – o mundo sensível – até chegar, por meio de uma dedução regressiva, à sua criação.

Essas ferramentas são, fundamentalmente, a matemática – sobretudo as suas vertentes geométrica e estereométrica –, a música e a astronomia que, utilizadas em conjunto, permitirão uma observação do mundo fenomênico de que se poderão retirar conclusões com valor filosófico. É, por exemplo, através da estereometria que Timeu consegue deduzir as formas dos elementos, atribuindo a cada um a figura estereométrica correspondente de acordo com as suas propriedades cinéticas: o cubo à terra, pois é, de entre os elementos, o que se move mais lentamente; o icosaedro à água; o octaedro ao ar; a pirâmide ao fogo. De forma análoga, a dedução destas figuras estereométricas depende também de um raciocínio matemático que, através da combinação dos triângulos-base (retângulo, equilátero e isósceles) mediada pela proporção, a geometria em plano passa a estereometria tridimensional, dando assim corpo às formas representáveis mentalmente e de forma abstrata. Em suma, ao apoiar-se nos ramos matemáticos da aritmética e da geometria, a mensagem teológica pode tomar corpo e tornar-se numa física filosófica, pois permite representar aquilo que não pode ser alcançado pelos olhos; trata-se de uma matemática teológica.

Por outro lado, é através da harmonia que proporcionada pela música que se pode conceber a dos movimentos dos corpos celestes, na medida em que ambos obedecem a um mesmo princípio cinético:

De fato, os sons mais lentos apanham os movimentos que de entre os mais rápidos chegaram primeiro e, quando esses movimentos estão a cessar e atingem a constância, chocam com os últimos e põem-nos em movimento.

(…) na segunda o Sol, sobre a terra; a estrela da manhã e o astro que dizem ser consagrado a Hermes na rota circular que tem a mesma velocidade que o Sol, ainda que lhes tenha cabido em sorte um ímpeto contrário ao dele. Daí decorre que o Sol – o astro de Hermes – e a estrela da manhã sucessivamente se alcancem e sejam alcançados mutuamente.

Os astros, tal como os sons, circulam juntos a diferentes distâncias uns dos outros – os astros em espaço, os sons em tempo, mas de acordo com uma mesma relação numérica que determina a harmonia do conjunto; é a este raciocínio que, segundo Aristóteles, os Pitagóricos chamavam “a música das esferas”, cuja adaptação é evidente no sistema que propõe o Timeu. Neste diálogo, Platão parece recuperar a identificação que Sócrates, na República, faz entre música e astronomia. Estabelecendo, contudo, a distinção entre os músicos que se dedicam à demanda do intervalo mínimo mensurável, condenáveis por se aterem em demasia à percepção sensível do som, e aqueles que procuram os números nos acordes que escutam, diz que são estes últimos que se aparentam aos que estudam os astros. Esta teoria da música que Sócrates elogia é a pitagórica.