Platão (Carta VII) – capacidade de discorrer sobre um assunto sério

Há pelo menos uma coisa que posso dizer sobre aqueles que escreveram ou escreverão e afirmam ter competência nos assuntos de que trato, quer afirmem ter sido instruídos neles por mim ou por outra pessoa, quer os tenham encontrado por si próprios: é que é impossível, pelo menos na minha opinião, que saibam alguma coisa sobre estes assuntos. Em todo o caso, não existe, nem nunca existirá, nenhum tratado da minha autoria sobre este assunto, porque, ao contrário de outras formas de conhecimento, é um conhecimento que não pode ser formulado; nasce do contato assíduo com o que é o seu próprio objeto, da partilha da sua vida, e surge na alma, como a chama que brota de uma faísca e depois cresce espontaneamente. O que sei também é que sou eu quem melhor o poderia apresentar por escrito ou oralmente, e que sou quem mais sofreria com a imperfeição do Tratado. Se eu fosse da opinião de que o assunto poderia ser escrito e formulado como deve ser para o público, o que poderia ter feito na minha vida de mais belo do que publicar algo tão precioso para todos e trazer à luz a verdadeira natureza das coisas? Mas não creio que um tal empreendimento fosse bom para a humanidade, para além dos raros indivíduos que o podem encontrar por si próprios graças a simples indicações. Só estaríamos a encher os outros de um desprezo indecoroso que não tem fundamento, ou de uma pretensão tão arrogante quanto vã. […]

Há uma verdadeira razão pela qual não devemos ousar escrever nada sobre este assunto, uma razão que já dei muitas vezes, mas que sinto que devo repetir mais uma vez. […]

Todos os modos de conhecimento começam a exprimir a qualidade, bem como o ser de cada coisa, por meio do instrumento falho que é a linguagem. É por isso que nenhum homem sensato se arriscaria a confiar-lhe o seu pensamento, especialmente sob a forma fixa de caracteres escritos. […] É precisamente por isso que qualquer homem sério, ocupado com assuntos sérios, terá o cuidado, ao escrever, de não deixar que tais assuntos caiam no domínio público e os exponha assim à malícia e às dúvidas. Assim, em suma, quando vemos obras escritas sob a forma de leis por um legislador, ou por qualquer outra pessoa sobre qualquer outro assunto, devemos estar atentos ao que as caracteriza: para ele, pelo menos se for sério, não é aquilo que é sério, mas sim aquilo que se situa num lugar qualquer do que lhe pertence de mais belo. Se, pelo contrário, foi o que ele considera sério que depositou assim nos caracteres da escrita, então devemos dizer dele: “a sua mente foi assolada” não “pelos deuses”, mas pelos mortais. [Platão, Carta VII]