Passemos agora ao exame do outro ponto sobre que estávamos em desacordo: se o maior mal para quem comete injustiça é ser punido, conforme sustentas, ou escapar ao castigo, de acordo com o meu modo de pensar? Consideremos a questão da seguinte maneira: sofrer pena por alguma falta ou ser punido justamente, não te parece que seja a mesma coisa?
Polo — Sem dúvida.
Sócrates — E não poderias afirmar que tudo o que é justo é belo, enquanto justo? Reflete antes de falar.
Polo — Parece-me que é assim mesmo, Sócrates.
XXXII — Sócrates — Considera também o seguinte: se alguém faz alguma coisa, não é forçoso haver quem sofra os efeitos do seu ato?
Polo — Penso que sim.
Sócrates — E quem sofre a ação do agente, não ficará como o outro faz? O que digo é o seguinte: se alguém bate, não é forçoso haver alguma coisa batida?
Polo — Necessariamente.
Sócrates — E se quem bate o faz com força e de pressa, não ficará batida do mesmo modo a coisa batida?
Polo — Sim.
Sócrates — Logo, o sofrimento da coisa batida será como a ação de quem bate?
Polo — Perfeitamente.
Sócrates — E não será também certo que se alguém queima, alguma coisa ficará queimada?
Polo — Como não?
Sócrates — E se ele queimar em excesso e a ponto de produzir muita dor, a coisa queimada ficará conforme queima o queimador?
Polo — Perfeitamente.
Sócrates — E se alguém cortar, não se dará a mesma coisa? Algo ficará cortado.
Polo — Sim.
Sócrates — E no caso de ser grande o corte, profundo e doloroso, não ficará a coisa cortada de acordo com o corte que lhe infligiu o cortador?
Polo — É claro.
Sócrates — Vê agora se concordas, em tese, com o que eu disse há pouco, que conforme seja a ação do agente, assim será o sofrimento do paciente.
Polo — Concordo.
Sócrates — Concedido esse ponto, dize-me se ser punido é sofrer ou agir?
Polo — Sofrer, Sócrates; forçosamente.
Sócrates — Da parte de alguém que atua?
Polo — Como não? Da parte de quem castiga.
Sócrates — E quem castiga com razão, castiga justamente?
Polo — Sim.
Sócrates — E pratica uma ação justa, ou não?
Polo — Justa.
Sócrates — Então, quem é castigado em punição de alguma falta, sofre justamente?
Polo — Parece que sim.
Sócrates — E não concordamos que o justo é também belo?
Polo — Perfeitamente.
Sócrates — Nesse caso, quem castiga comete uma ação bela, e a pessoa punida sofre essa mesma ação?
Polo — Sim.
XXXIII — Sócrates — Mas, se é bela, é também boa, por ser agradável e útil?
Polo — Necessariamente.
Sócrates — Então, quem é punido sofre o que é bom?
Polo — Parece.
Sócrates — E tira vantagem disso?
Polo—Sim
Sócrates — Será a vantagem que imagino, por tornar-se melhor sua alma, no caso de ser ele punido justa mente?
Polo — Com toda a probabilidade.
Sócrates — Então, fica livre da maldade da alma quem é punido?
Polo — Sim.
Sócrates — Nesse caso, fica livre do maior dos males? Examina a questão da seguinte maneira: Para quem acumula riqueza, achas que pode haver outro mal além da pobreza?
Polo — Não; é a pobreza mesmo.
Sócrates — E com relação às condições do corpo, não dirias que a fraqueza seja um mal, ou as doenças, ou a feiura e tudo o mais da mesma espécie?
Polo — Sem dúvida.
Sócrates — E não és de opinião que na alma pode haver maldade?
Polo — Como não?
Sócrates — E não classificas como tal a injustiça, a ignorância, a cobardia e seus semelhantes?
Polo — Perfeitamente.
Sócrates — Assim, para a riqueza, o corpo e a alma, por serem três, indicaste três modalidades de males: pobreza, doença e injustiça.
Polo — Sim.
Sócrates — E agora, qual desses males é o mais feio? Não será a injustiça e, de modo geral, os vícios da alma?
Polo — Sem comparação.
Sócrates — Sendo a mais feia, terá de ser também a pior?
Polo — Por que dizes isso, Sócrates?
Sócrates — É o seguinte: em todos os casos, o que é feio só chega a ser isso ou por proporcionar a maior ou o maior dano, ou por ambas as coisas, de acordo o que assentamos antes.
Polo — É certo.
Sócrates — E agora mesmo, não concordamos que o que há de mais feio é a injustiça e os vícios da alma em geral?
Polo — Concordamos, de fato.
Sócrates — Logo, é mais feio por ser molesto e doloroso em alto grau, ou por causar dano, se não o for por ambas as coisas?
Polo — Necessariamente.
Sócrates — E ser intemperante, injusto, cobarde e ignorante, não é mais doloroso do que ser pobre ou doente?
Polo — Não me parece, Sócrates, aceitável essa conclusão.
Sócrates — Para que a maldade da alma ultrapasse e todas as outras em ser a mais feia, se não é por ser a mais dolorosa, como disseste, sê-lo-á pela grandeza do dano ou pelo mal prodigioso que pode causar.
Polo — É claro.
Sócrates — Mas o que se destaca pelos maiores danos que possa causar, tem de ser o maior mal que existe.
Polo — Sim.
Sócrates — A injustiça, a intemperança e os demais vícios da alma, não são os maiores males do mundo?
Polo — Parece que sim.
XXXIV — Sócrates — E agora, qual é a arte que nos livra da pobreza, não é a economia?
Polo — É.
Sócrates — E da doença? A medicina?
Polo — Necessariamente.
Sócrates — E da maldade e da injustiça? Se te atrapalhas com o problema assim formulado, considera o seguinte: para onde e para quem levamos os doentes do corpo?
Polo — Para os médicos, Sócrates.
Sócrates — E os que cometem injustiça ou são intemperantes?
Polo — Referes-te aos juízes?
Sócrates — Para receberem castigo, não é verdade?
Polo — De acordo.
Sócrates — E não é usando de alguma justiça que punem com razão os que punem?
Polo — E evidente.
Sócrates — Logo, a economia livra da pobreza; a medicina, da doença; e o castigo, da intemperança e da injustiça.
Polo — Parece.
Sócrates — E de todas elas, qual será a mais bela?
Polo — A que te referes?
Sócrates — Economia, medicina, justiça.
Polo — Sem comparação, Sócrates, a justiça.
Sócrates — Não é por proporcionar o maior prazer, ou as maiores vantagens, ou por ambas as coisas, visto ser a mais bela?
Polo—Sim.
Sócrates — Será porventura agradável ficar sob tratamento médico, e os que estão sendo tratados alegram-se com isso?
Polo — Penso que não.
Sócrates — Isso, porém, tem sua utilidade. Ou não tem?
Polo — Sim.
Sócrates — Pois liberta de um grande mal, valendo a pena, por conseguinte, suportar dor para recuperar a saúde.
Polo — Como não?
Sócrates — E quando será mais feliz o homem, no que diz respeito ao corpo: quando se acha sob tratamento médico, ou quando não sofre de nenhuma doença?
Polo — Evidentemente, quando não sofre de nada.
Sócrates — É que a felicidade, ao que parece, não consiste em livrar-se alguém dos males, mas em conservar-se de todo livre deles.
Polo — É isso mesmo.
Sócrates — E então? De dois doentes do corpo e da alma, qual é o mais infeliz: o que se submete a trata mento e se liberta da doença, ou o que não é tratado e continua com ela?
Polo — A meu ver, o que não é tratado.
Sócrates — Já não dissemos que receber castigo é libertar-se do maior mal, a maldade?
Polo — Realmente.
Sócrates — É que o castigo nos deixa mais prudentes e justos, atuando a justiça como a medicina da malda de.
Polo — Sim.
Sócrates — Felicíssima, por conseguinte, é a pessoa isenta de vício na alma, pois já vimos ser isso o maior dos males.
Polo — É evidente.
Sócrates — Em segundo lugar, vem a pessoa que ficou livre do vício.
Polo — Parece que sim.
Sócrates — Isto é, a pessoa que admoestamos, ou repreendemos, ou que foi punida.
Polo—Sim.
Sócrates — Nas piores condições, portanto, vive quem é injusto e não se libertou de sua injustiça.
Polo — É o que se conclui.