MITOLOGIA — EROS E PSIQUE
CAPÍTULO V
Assim que ficou sozinha, Psique, transtornada e agitada, inquieta-se apanhada nas correntezas do sofrimento que a transporta de um lado para outro como se fosse um mar; embora resolvida a perpetrar o crime, ela subitamente hesita, sem poder resolver-se, arrastada por pensamentos contraditórios que aumentam a sua indecisão, impulsionada pelos vários efeitos que a infelicidade parece lhe causar. Ela se decide, depois adia, em seguida torna a encorajar-se — desconfia das irmãs — encoleriza-se com o esposo. O certo é que num mesmo corpo odeia o monstro e ama.o marido. Contudo, faz seus preparativos quando a noite se aproxima, preparando com demasiada pressa o necessário para perpetrar seu nefando crime. A noite chegou e, depois de entregar-se com ela às doces lutas do amor, o marido logo mergulhou em sono profundo. No momento em que geralmente Psique ficava inerte de corpo e alma, ela consegue dessa vez reunir suas forças, segurando o punhal numa das mãos e na outra o candeeiro: ela afirma o seu sexo através da sua ousadia. Mas, assim que aproximou de leve a luz do rosto do marido, eis que se revela o grande segredo: ela avista a mais bela e delicada de todas as feras, Eros, o deus do amor, ali deitado, o mais belo dos deuses. Até a chama do candeeiro estremeceu, derramando mais luz diante dessa visão, e o punhal arrependeu-se de ter uma ponta tão aguçada. Psique, ao contrário, embevecida pelo que via, com a alma aniquilada, trêmula e pálida, cai de joelhos e procura enterrar o punhal no próprio seio. Teria de fato levado a cabo seu intento, caso o punhal, por medo do castigo de semelhante crime, não se lhe tivesse resvalado da mão. Esgotada, livre da ameaça que a oprimia, Psique observou outra vez a beleza dos traços divinos e isso reavivou-lhe o espírito. Ela viu o cabelo brilhante e farto da cabeça dourada que recendia a ambrosia, viu os ombros brancos como leite, as faces rosadas emolduradas pelos cachos de cabelo, alguns deles caídos para a frente, os outros para trás, com um brilho que ofuscava até mesmo a luz trêmula do candeeiro; nas asas brancas como neve, nas costas rosadas do deus alado, embora não houvesse a mais leve brisa, estremeciam as delicadas penas com inquietação; Vênus nunca precisaria arrepender-se de ter dado à luz um corpo tão macio e brilhante.
Ao pé da cama estavam a aljava e as flechas, armas do deus do amor. Como Psique, insaciável e, além de tudo, bastante curiosa, também as examinasse e tocasse, acabou por pegar uma das flechas da aljava para testar sua ponta com o polegar, vindo a ferir-se ao tocá-la com um pouco mais de força dos dedos trêmulos, chegando mesmo a cair deles algumas gotinhas de sangue. Foi assim que, inadvertidamente, inconsciente do que fazia e de livre vontade, Psique apaixonou-se eternamente pelo próprio Amor; e agora, mais do que nunca ardente de paixão, ela se inclina sobre ele e começa a beijá-lo com lascívia embora com medo de acordá-lo. Contudo, excitada com a descoberta de tão inestimável tesouro e com os sentidos embriagados de paixão, esqueceu-se do candeeiro. Este, por maldade ou talvez corroído pela inveja por Psique poder tocar e ao mesmo tempo beijar aquele corpo maravilhoso, curvou-se demais e deixou uma gota de óleo fervente cair no ombro do deus adormecido. Ah! candeeiro temerário e insolente, péssimo serviçal do Amor, roubaste do deus todo o ardor e, ainda pior, queimaste o próprio senhor do fogo — o que quiseste fazer foi apoderar-se também da visão que ele oferecia nessa noite por algum tempo mais. Espera que ele te encontre! Mas assim Eros despertou do seu sono com a dor da queimadura, e ao ver desvendado seu segredo, levantou vôo no mesmo instante sem dizer uma única palavra, afastando-se depressa da esposa, que tentou detê-lo seguindo-o através das nuvens, agarrando-sé com ambas as mãos à sua perna direita. Contudo, exausta, Psique caiu ao solo.