MITOLOGIA — EROS E PSIQUE
CAPÍTULO 7
Enquanto Psique peregrinava de cidade em cidade à procura de Cupido, este guardava o leito na casa de sua mãe, gemendo de dor pela queimadura. Vênus não se encontrava presente. Foi então que uma gaivota branca como a neve; dessas que voam nas cristas das ondas, desceu apressada até o fundo do mar onde a deusa se banhava e nadava despreocupadamente. A gaivota indiscreta contou-lhe tudo acerca do filho. Disse-lhe que Eros estava doente de paixão pela esposa e que não se viam possibilidades de cura para o seu mal. Esclareceu ainda que toda a família da deusa, já notória pela sua devassidão, que todos conheciam através dos rumores, sabia dos fatos e que estes já andavam na boca do povo. Dizia-se que, enquanto Eros fazia suas orgias na montanha, Vênus se afastara para o mar. Isso causara certa perda de dignidade, Vênus perdera a boa vontade do povo que se corrompeu. Tudo se tornara reles e vulgar, não havia mais casamentos, nem vínculos de amizade; o amor pelos filhos deixara de existir. Restara uma enorme falta de moral e a proliferação de uniões ilícitas e pecaminosas, dessas que dão asco. Tendo denunciado todos esses fatos aos ouvidos de Vênus, a alcoviteira ave ainda difamou-lhe o filho. Encolerizada, a deusa explodiu:
— Pois então meu belo filho já tem uma amante? Dize-me então o seu nome, já que me serves com tanta lealdade; dize-me o nome daquela que seduziu o frágil e imberbe rapaz. Acaso será alguma das ninfas ou das criadas do palácio, ou talvez uma das musas do coro, ou talvez seja uma das Graças que trabalha para mim?
A ave tagarela não se fez de rogada e disse:
— Não sei, senhora, creio que se trata de uma menina que, se não me engano, chama-se Psique, e o teu filho morre de paixão por ela.
Raivosa, Vênus grita com toda a força que pode:
— Psique! Se Eros de fato ama a minha imitação, essa mulher que usurpou o meu nome, então meu adorável filho me tomou por uma alcoviteira, pois fui eu mesma quem a mostrou a ele!
Ao dizer isso com voz áspera, ela retirou-se a toda pressa do mar e foi diretamente para seu palácio dourado; e logo que viu o filho doente tal como a ave lhe havia dito, gritou-lhe, assim que entrou pela porta:
— E assim — disse ela — é essa a harmonia que existe na minha família? Tua malcriação consiste em ter — o que é mais grave — desobedecido às ordens da tua mãe, aliás, da tua senhora, pisando-me aos pés, impondo-me uma rival — tu, fedelho de pouca idade — dormindo com ela, enchendo-a de abraços ainda imaturos, de tal sorte que talvez eu ainda tenha de aturá-la como nora? Julgas de fato, devasso e asqueroso sedutor, que somente tu podes ter um filho e que eu, por ser mais velha, não poderia conceber? Pois fica sabendo que gerarei um filho muito melhor do que tu. Aliás, para que sintas a humilhação, adotarei um dos meus escravos e lhe darei tuas asas, teu archote, tuas setas e tudo quanto carregas, mas para outro fim. Pois saibas que nada do que possuis pertence à propriedade do teu pai; é tudo meu! Tua extrema juventude te foi má conselheira e tantas vezes ataste, desrespeitosamente com teus dedos pontudos os teus pais, e à tua mãe — eu mesmo o confesso — quantas vezes me desnudaste e me possuíste! Agora desprezas tua mãe como se ela fosse uma pobre viúva e não tens medo nenhum de teu padrasto Marte, o mais forte de todos os guerreiros! Mas também, por que o temerias? Afinal, fostes tu que lhe arranjaste, para desgosto meu, as meninas que lhe serviram de concubinas! Mas já farei oom que te arrependas de teus jogos amorosos, e já sentirás como é amargo e pesado o jugo do teu casamento! E eu, que faço agora, ridicularizada por todos? Onde me esconderei? De que modo dominarei essa salamandra? Devo pedir ajuda à minha rival, a Sobriedade, a quem tantas vezes tenho ofendido devido à sua exuberância? Contudo, sinto calafrios de horror só ao pensar que terei de falar com essa tua mulher vulgar e coberta de imundície. Mas a vingança é um consolo e, venha ela de onde vier, não a desprezarei.
“Psique terá de apaixonar-se irremediavelmente por Eros, e por nenhum outro, para que açoite esse miserável da maneira mais amarga, lhe tire a aljava e as flechas, para que solte a corda do seu arco e tire o pavio do seu archote. Para que até mesmo reprima o seu corpo com os métodos mais violentos. Sentirei que terá sido feita justiça ao agravo que sofri no momento em que ela tosar o seu cabelo, esses mesmos cachos que tornei brilhantes de tanto alisá-los com as mãos, e quando lhe tiver cortado as asas, que tantas vezes borrifei com o néctar da fonte, quando o carregava ao colo!”
Tendo dito isto, precipitou-se porta afora, raivosa e azeda devido ao mau humor venusiano. Logo, entretanto, encontrou Deméter e Hera; como estas a vissem com os olhos inchados, perguntaram-lhe por que ela amortecia o encanto dos seus olhos brilhantes sob tão cerradas sobrancelhas. Mas Vênus respondeu:
— Bem a propósito me apareceis para atender os desejos do meu peito ardente, que por certo cumprireis. Procurai, por favor, com todo o empenho, aquela fugitiva, Psique, pois creio que já sabeis das belas lendas sobre a minha família, sem falar nos atos do meu filho que não vos devem ter sido ocultados.
Mas Deméter e Hera, que não desconheciam os acontecimentos, tentaram aplacar a fúria da deusa, tentando acalmá-la:
— O que fez teu filho de tão terrível, por que queres combater tão obstinadamente os seus prazeres e por que desejas aniquilar aquela que ele ama? Que crime será esse de sorrir para uma bela mulher? Ou acaso não sabes que ele pertence ao sexo masculino e que já é um adolescente, ou acaso esqueceste quantos anos ele tem? Ou achas que ainda é um menino, pelo fato de não aparentar a idade real? Mas tu, que és sua mãe e ainda por cima uma mulher compreensiva, continuarás a investigar sempre com curiosidade os jogos amorosos do rapaz, e desprezar seu ardor juvenil? Queres destruir seus amores e repreender o atrativo da beleza e do prazer das relações humanas, até do teu filho? Quem dentre os deuses, quem dentre os mortais suportará que semeies paixões entre os homens, se proíbes teus familiares de gozarem os encantos do amor e os excluis de todas as alegrias proporcionadas pela entrega da mulher, um prazer que todos podem ter?
Elas lisonjeavam Eros por medo de suas flechas, defendendo-o apesar de ele não estar presente. Vênus, entretanto, irritada por ver que a injustiça que sofrera era tratada com pouco-caso, abandonou-as no meio do caminho e, virando-se para outro lado, retirou-se apressadamente para o mar.