Ferreira dos Santos: A GERAÇÃO E A CORRUPÇÃO NA FILOSOFIA GREGA

Excertos de Mário Ferreira dos Santos, «Aristóteles e as Mutações»

Impõe-se caracterizar a posição aristotélica, dentro do pensamento grego, para que se torne melhor compreensível esta obra, cujo valor afirma-se em nossos dias em face dos atuais conhecimentos da física, que é mais aristotélica do que se julgava no século passado, quando a valorização de Demócrito atingira a um nível jamais alcançado.

A posição metafísica de Parmênides fundava-se em grande parte num adágio axiomático para a filosofia grega até então: do nada, nada se gera (ex nihilo, nihil).

É admissível sintetizar todo o pensamento pré-socrático nesta afirmativa. Poderia o ser ser único ou ilimitado, como o apeiron de Anaximandro, ou múltiplo, como o de Empédocles, mas os gregos, todos sem excepção, e o podemos afirmar fundados nos documentos que. nos sobram, aceitavam, sem discussão, que do nada, nada se geraria, e que o princípio único ou múltiplo de todas as coisas era o ser.

Muito bem salientou estes aspectos, posteriormente, Duns Scot quando expunha que poderiam os filósofos discutir, como discutiram, a essência, as características desse ser, mas que havia uma unanimidade na filosofia ocidental pelo menos, que consistia na aceitação de um ser, indeterminadamente considerado, mas ser, como princípio, fonte, ou início, começo de todas as coisas.

Pode-se dizer, no entanto, em face da história, que propriamente com Parmênides são iniciados, entre os gregos, os estudos “metafísicos” sobre o ser, pois até então as especulações se cingiam ao campo “físico”. É verdade que entre os pitagóricos já se haviam processado especulações sobre “o ser enquanto ser”, o ser simplesmente ser, mas como há neste sector ainda muita confusão sobre a atividade filosófica do pitagorismo, que sofre a incompreensão quase geral do seu real sentido, preferimos deixar de examinar aqui em nossos comentários a posição metafísica dessa escola, sobretudo dos iniciados em grau de teleiotes, para tratar deste tema em obra especial de próxima publicação (“Pitágoras e o Número”).

A teoria gnoseológica de Parmênides estabelece um paralelismo entre a ordem do ser e a do conhecer, pois “o ente é inteligível e o inteligível é ente”. O ente, to ón, corresponde ao latino ens, o “id cui competit esse”, aquilo ao qual compete o ser, aquilo ao qual se pode atribuir o ser, afirmar o ser, dizer “que é”.

A aceitação da inteligibilidade do ente é uma afirmação do “princípio racional de razão suficiente”.

Afirmava Parmênides insistentemente nos fragmentos que nos restam, que o ser é e o não-ser não é (o ente é e o não ente não é). Aceitava Parmênides apenas um ente, um único ser que é, que existe. Todos esses aspectos são demasiadamente conhecidos, e já foram tratados em nossos livros anteriores. Mas o que é importante ressaltar neste ponto, é que Parmênides afirma que o ente não pode produzir o ente. E os argumentos que oferece podem ser sintetizados da seguinte maneira.

Se existisse mais de um ente (ser), o segundo ente se distinguiria do primeiro ou pelo que é ente ou pelo que não é ente. Pelo que não é ente, não poderia distinguir-se, pois como o que é nada poderia distinguir algo de algo? Também não o poderia ser pelo ente, pois o ente se identificaria com o primeiro,pois a diferença seria ainda ente, e não se distinguiria, como tal, do primeiro. Se o ente produzisse o ente, apenas estaria afirmando a si mesmo. Portanto, entre o ente e o não-ente não há lugar para um “intermédio”, afirmava Parmênides, o que é um modo de afirmar o princípio de identidade, que, com certa razão, a ele se atribui o seu primeiro enunciado.

Consequentemente Parmênides termina por negar o “nascer” e o “perecer”, como toda e qualquer mutação. Pois, como poderia uma coisa tornar-se o que já é? O devir é o caminho do ser, pois todo devir é um tornar-se ser. E como o ente, que já é, poderia tornar-se ente, se já é?

Colocado nessa situação, Parmênides achava-se ante um dilema: se uma coisa devêm, ela devêm do não-ente para o ente, ou do ente para o ente. O primeiro é impossível, porque como poderia o não-ente gerar o ente, se o não-ente é nada? E como poderia o ente tornar-se ente se o ente já é ente? Nessas condições, são impensáveis a mutação, o devir, toda e qualquer produção. E como só o ente é inteligível, todo devir é ininteligível, e não há. Daí exclamar ele: “Deste modo, é extinto o fogo do Devir, o Perecer é banido”. Se o ente é, o perecer, que é um devir do ente ao não-ser, não é.

Mas como negar o testemunho dos nossos sentidos que afirmam a mutabilidade? Naturalmente que Parmênides sabia disso. Mas afirmava que tudo isso era aparência (phaenomenon), fenômeno apenas.

Mas há ai uma realidade que a filosofia de Parmênides não poderia salvar. Parmênides atualizava o um, e virtualizava a multiplicidade, que ele sacrificava por aquele, sem conseguir resolver o tema eterno e fundamental de toda a filosofia que, em todos os tempos, paira entre essas duas antinomias, ora afirmando apenas uma para negar a outra, ora tentando as grandes sínteses, como a de Aristóteles, que em breve estudaremos, embora circunscrita apenas ao que interessa ao tema desta obra.

O pensamento de Parmênides teve uma influência imensa na filosofia grega. Impunha-se a solução entre o Um e o Múltiplo.

Surgiram, então, soluções que procuravam em linhas gerais explicar da seguinte maneira a multiplicidade. O ente seria formado de partículas de intrínseca imutabilidade (positividade parmenídica da imutabilidade do ser), que ora se aproximavam, ora se afastavam, conforme atrações ou repulsões, que entre elas se dariam. Dessas combinações múltiplas surgiriam, então, a heterogeneidade do existir. Era com o homogêneo que se procurava explicar o heterogêneo. Dessa forma, o “nascer” (a geração) e o “perecer” (a corrupção) seriam apenas produtos das combinações qualitativas dessas partículas do ser.

Neste ponto, Empédocles, Anaxágoras e os atomistas Leucipo e Demócrito estavam de acordo, separando-se, porém, em outros aspectos, que Ar. examina no seu texto.

A mutabilidade seria assim mecanicamente explicada, e essa concepção é, em suas linhas gerais, a súmula do pensamento do mecanicismo grego, que vai encontrar uma replica no naturalismo aristotélico, que se impunha em face das aporias (das dificuldades teoréticas), que Ar. examina com tanta argúcia no texto desta obra.