Excerto de HADOT, Pierre. Exercícios Espirituais e Filosofia Antiga. Tr. Flavio Fontenelle Loque & Loraine Oliveira. São Paulo: É Realizações, 2014, p. 327 (original em francês)
A filosofia é um luxo? O que é um luxo é dispendioso e inútil. Teremos, pois, de evocar muito brevemente o que se poderia chamar de aspecto econômico dessa questão, isto é, as condições financeiras indispensáveis para filosofar em nosso mundo moderno. Mas aprofundar esse aspecto nos levaria ao problema geral, sociológico, da desigualdade de chances nas carreiras. É evidentemente sobre o problema da inutilidade da filosofia que nos deteremos. Parece-nos, portanto, que a questão posta nos obriga a nos interrogar necessariamente sobre a própria definição da filosofia. E, finalmente, para além até mesmo da natureza da filosofia, é ao drama da condição humana que nossa reflexão nos conduzirá.
Em geral, os não filósofos consideram a filosofia uma linguagem abstrusa, um discurso abstrato, que um pequeno grupo de especialistas, único a poder compreendê-lo, desenvolve indefinidamente acerca de questões incompreensíveis e sem interesse, uma ocupação reservada a alguns privilegiados que, graças a seu dinheiro ou a uma feliz confluência de circunstâncias, têm o ócio para se dedicar a ela; um luxo, portanto. E é preciso reconhecer que, atualmente, para que um único aluno possa tornar-se candidato ao Baccalauréat, para que ele alcance o privilégio de poder redigir a dissertação filosófica hoje exigida, foram necessárias pesadas despesas financeiras assumidas por seus pais e pelos contribuintes. E para que lhe servirá realmente, “na vida”, o fato de ter redigido esse exercício de estilo? No nosso mundo moderno no qual reina a técnica científica e industrial, no qual tudo é avaliado em função da rentabilidade e do lucro comercial, para que pode servir discutir as relações entre verdade e subjetividade, mediato e imediato, contingência e necessidade, ou a dúvida metódica em Descartes? É verdade, aliás, que a filosofia está longe de estar totalmente ausente do mundo moderno, isto é, das telas de televisão, porque, em geral, o homem contemporâneo não tem o sentimento de perceber verdadeiramente o mundo exterior senão quando o vê refletido nesses pequenos quadriláteros. Mostram-se então de tempos em tempos, na televisão, filósofos neste ou naquele programa: eles geralmente seduzem o público com sua arte de falar, compra-se o livro deles no dia seguinte, folheiam-se suas primeiras páginas, antes de fechar definitivamente a obra, repelido que se é, na maior parte do tempo, pelo jargão incompreensível. Mas tudo isso é sentido precisamente como um luxo de privilegiados, como negócio de um “mundo muito pequeno”, sem influência sobre as grandes escolhas da vida.
A glória da filosofia, responderão alguns filósofos, é precisamente ser um luxo e um discurso inútil. Primeiramente, se não houvesse senão o útil no mundo, o mundo seria irrespirável. A poesia, a música, a pintura, elas também são inúteis. Elas não melhoram a produtividade. Mas são, todavia, indispensáveis à vida. Elas nos libertam da urgência utilitária. É, igualmente, o caso da filosofia. Sócrates, nos diálogos de Platão, ressalta a seus interlocutores que eles têm todo o tempo deles para discutir, que nada os apressa. E é bem verdadeiro que, para isso, é preciso ócio, como é preciso ócio para pintar, para compor música e poesia.
E é precisamente o papel da filosofia revelar aos homens a utilidade do inútil ou, caso se prefira, de lhes ensinar a distinguir entre dois sentidos da palavra útil. Há o que é útil para um fim particular: a calefação, a iluminação ou os transportes, e há o que é útil ao homem enquanto homem, enquanto ser pensante. O discurso da filosofia é “útil” nesse último sentido, mas é um luxo, caso se considere como útil apenas o que serve a fins particulares e materiais.