Excertos da tradução de História da Filosofia, de Émile Bréhier, por Eduardo Sucupira FIlho
O PROBLEMA POLÍTICO
É a partir desse momento que se vigoriza o pensamento político subordinado à moral e à psicologia. Mas não se encontra na situação da dialética, a qual não abandona o mundo das ideias, porém, ao contrário, se despedaça, incessantemente, contra os fatos. Platão, repetimos, quer ser, não um utopista, mas reformador. Como reformador, deve dar-se conta da natureza dos homens e das coisas, tais cbmo se apresentam.
O que é estranho nesse reformador é que, ao contrário dos sofistas, está bem longe de crer no progresso. Muito meditou ele sobre a história e a evolução das sociedades, como sobre a história das almas individuais, misturando, além disso, o mito e a lenda à observação psicológica. Mas a observação, como o mito, põe sempre a descoberto a dupla conclusão de que a parte de justiça e de virtude, que existem em um indivíduo ou em uma sociedade, depende, sobretudo, de condições externas, de uma feliz oportunidade, e que, se há mudanças nas sociedades, estas tendem sempre para o melhor ou pior, de acordo com um ritmo cíclico que obriga a sociedade a repassar por várias etapas. A legislação, mesmo de um filósofo, tem por fim servir-se o melhor possível das condições de fato que encontra diante de si, e também, deter ou entravar as mudanças, dar à sociedade a maior estabilidade possível. Jamais, pelo contrário, se percebe, em Platão, a ideia de uma reforma positiva, de verdadeira invenção social; trata-se sempre de manter e conservar, de separar ou suprimir. É muito significativo o mito em que mostra que os homens não evitaram a decadência completa senão porque os deuses os fizeram conhecer o fogo; o aprendizado das artes, e lhes deram os grãos de trigo (Político, 274 e). A iniciativa dos homens não teria possibilidade de alcançar essas descobertas.
A finalidade da reforma do filósofo não pode ser outra senão imitar, tanto quanto possível, o estado social mais perfeito de que tenha ideia, e de tomar, do jeito que puder, a sociedade tal como se apresenta naturalmente, a fim de impedir que caia mais baixo (Leis, IV, 713 e). Jamais cuida de promover um verdadeiro progresso. Se uma sociedade apresenta as condições exigidas para que nela se apliquem os esforços do filósofo, será por casualidade, por uma série de circunstâncias independentes da vontade humana, graças, por exemplo, a condições de clima e de solo (704 a sq); essas condições são, por conseguinte, o efeito de um acaso ou da providência divina.
Disso decorre o caráter positivo e realista, por vezes conservador, da política platônica; e, ainda, a inclinação, crescente com a idade, pela história e as antigas tradições (Prólogo do Timeu e Crítias). Como consequência, a condenação de toda política de expansão, que fizera a grandeza de Atenas, mas também a subversão dos costumes (Górgias, 508 e – 519 b). Platão adstringiu-se, unicamente, a observar a forma tradicional da cidade grega. Entende-se, por exemplo, que, na República, é uma cidade grega que ele quer administrar (470 e). Se mais tarde, no Político (262 cd), ele considerou ridícula a divisão da humanidade em gregos e bárbaros, não é menos verdade que quer, antes de tudo, fortalecer o helenismo, estabelecer a paz entre as cidades e eliminar a prática de pilhagem e de redução à escravidão que acompanhavam as vitórias de uma cidade sobre outra (República, V, 469 b sq).
JUSTIÇA SOCIAL
O essencial da justiça social, em Platão, é a unificação da sociedade (República, IV, 423 d). A justiça nas cidades imita, tanto quanto possível, as essências ideais “bem ordenadas, guardando sempre a mesma relação, sem se fazerem, mutuamente, nenhum mal, dispostas por ordem e segundo a razão” (VI, 500 c). A cidade justa dá-nos um exemplo de multiplicidade bem ordenada desses mitos, acerca de cuja natureza deve o dialético descobrir. Só quando se souber o que poderá ser esse misto, é que será possível determinar o que é alma justa, dado que a justiça na alma é uma ordenação de suas partes, em tudo análoga à disposição das partes da sociedade, o que constitui a justiça social. A República distingue-se dos subsequentes escritos políticos de Platão, porque insiste, sobremodo, nas condições dessa unidade. Apresenta a investigação sob forma de uma história da sociedade, exatamente como, no Timeu, as condições de estabilidade do mundo se descobrem na história da formação do mundo pela intervenção de um demiurgo. Acontece que, nessa história, sua visão se estende além da reforma de uma cidade grega, até alcançar as condições fundamentais de todo agregado humano (369 b, sobre a divisão do trabalho).
A cidade nasce das necessidades e da descoberta de meios racionais para satisfazer essas necessidades. Esse meio é a divisão do trabalho. Existe cidade desde que haja reunião de quatro ou cinco pessoas, que exigem, cada uma, a conveniência de satisfazer as necessidades elementares de todas as outras, em matéria de alimentação, vestuário e alojamento. O trabalhador, que produz o alimento de todos, terá, em compensação, abrigo e vestuário feitos pelos outros. Cada qual, especializado em seu ofício, produzirá mais e melhor. A cidade, sob sua forma elementar, não é uma reunião de seres iguais e semelhantes, mas, ao contrário, de seres desiguais e dessemelhantes; ela permanecerá sob suas mais elevadas formas, o que garantirá a solidariedade de suas partes e unidade (370 ab). As funções tornar-se-ão mais complexas à medida que a massa humana cresça e as necessidades se multipliquem. Ao lado do trabalhador, por exemplo, haverá um fabricante especial de arados e instrumentos agrícolas (370 c); a par dos produtores, criar-se-á a classe dos comerciantes, que promovem os intercâmbios por terra e mar (371 ab). Mas o princípio permanece o mesmo, e continuará sendo o mesmo quando a cidade alcance completa organização e as funções se agrupem em um pequeno número de classes: artesãos, que se ocupam dos meios de satisfazer as necessidades materiais; soldados, que defendem a cidade contra seus vizinhos (373 c); “guardiães”, incumbidos de fazer cumprir as leis. Essas três classes representam as três funções essenciais de toda cidade: produção, defesa, administração interna (434 c).
De como essas funções serão levadas a termo com êxito, constitui para Platão o único problema social. Não se trata de utilizar os recursos da cidade para o bem-estar de um indivíduo ou classe. “Fundamos a cidade, responde Sócrates a Adimanto, que lhe censura a vida árdua atribuída aos ‘guardiães’, não para que uma classe tenha bem-estar superior, mas para que a cidade inteira seja feliz.” (420 b; comparar 465 e sq) O indivíduo que faz parte da cidade está destinado a cumprir sua função social, antes de qualquer coisa. Nisso é que consiste a justiça; ser justo é cumprir sua própria função (434 c).
NATUREZA E SOCIEDADE
A esta altura, apresenta-se a Platão um problema grave. As necessidades da sociedade ideal devem contar com a natureza. Com efeito, o exercício de cada função social supõe, não somente uma educação adquirida, mas ainda, aptidões naturais. O amor do lucro, no artesão; a paixão generosa, necessária ao soldado; a prudência e a reflexão, no guardião da cidade, têm por base um caráter inato que nenhuma forma social poderia criar (455 b). E há mais: as diversas proporções em que os caracteres existem dependem da natureza do meio geográfico. “Uma região, dirá ele, ao fim de sua vida, não é, propriamente, igual a uma outra para tornar os homens melhores ou piores.” (Leis, 747 d) O estudo dos números, que, em alguns, leva até a filosofia e a dialética, produzirá entre egípcios e fenícios ou outros povos a fraude e não a ciência.
A essa natureza, Platão atribui extrema importância, especialmente quando fala dos verdadeiros dirigentes da cidade, os filósofos. Não deixa de recomendar a escolha, segundo as aptidões naturais, dos que serão capazes de receber o ensino da dialética; e faz uma lista detalhada de qualidades inatas indispensáveis: amor à verdade e facilidade de aprendizagem; escassez de desejos que se oponham ao conhecimento; nobreza de espírito e coragem; e, finalmente, uma memória precisa e ampla (República, 490 c). A reunião de tais qualidades é muito difícil, dado que há quase incompatibilidade entre as qualidades exigidas, notadamente, entre a sutileza de um espírito continuamente ativo e a gravidade calma; entre a inércia do homem descuidado de perigos e a atenção aguda dos que percebem perigosa a nobreza dum velho ateniense e a sutileza de um sofista, eis o que deve reunir a natureza filosófica.
Ora, entre as exigências da sociedade ideal e a que lhe fornece a natureza, não há, necessariamente, harmonia; existe sempre uma parte da realidade que escapa à arte humana. Não há pensador que tenha levado isso com mais consciência do que Platão. Para explicar esse último dado, a realidade dos caracteres que escapa à razão, e que, entretanto, modela em cada um de nós o nosso destino, Platão apela para um modo de explicação, em si mesmo irracional, que é o mito da eleição das vidas. Após a vida terrenal, as almas sofrem castigos ou recebem recompensas, segundo a justiça com que agiram, e, depois, voltam a reunir-se para escolher nova vida: tal escolha é plenamente voluntária, e os deuses nunca são responsáveis; mas, uma vez isso feito, é sancionada pela necessidade, e pelas Moiras, e a alma jamais escapará a seu destino. Antes de renascer, passa nas águas do Letes, que apaga toda a lembrança de sua eleição; depois, a nova vida se desenrola conforme ao que desejou. Vê-se, pelo lugar que esse mito ocupa, ao fim da República (617 d- 621 b), que contrasta com a anterior preocupação política, embora só se refira ao destino individual. Há, até certo ponto, conflito entre a explicação mítica, que atribui nossa sorte a uma escolha voluntária, e a explicação naturalista, que dá conta do caráter dos homens pelo meio geográfico. E, provavelmente, para unir os dois, Platão, na última forma que deu ao mito, faz apelo à ação da providência e da Diké universal, que organiza o mundo de maneira a que cada um seja, espontaneamente, atraído para o lugar aonde merece ir (Leis. X, 903 d; 905 b). Sua intenção, nem por isso é menos clara: apresentar o caráter como derradeiro elemento.
Doutra parte, a fixidez dos caracteres é, em certa medida, uma garantia de fixidez social e, consequentemente, de justiça. Do mesmo modo, a arte social, se não pode produzir os caracteres, a seu talante, deve, pelo menos, impedir que se alterem de geração em geração. A fim de propiciar um ponto de apoio ao legislador, Platão introduz, além das explicações mítica e naturalista, uma explicação por herança, incompatível com as duas primeiras. Se a explicação é verdadeira, os dirigentes da cidade podem, regulamentando, habilmente, os casamentos, chegar a manter em estado de pureza os caracteres adequados a cada classe social, como os criadores sabem manter as raças puras (República, 459 b; 460 de). A negligência na aplicação exata do regulamento das uniões acarretará, com a decadência da aristocracia filosófica, a de toda a cidade (546 c). Nenhum meio humano surge para restabelecer o estado primitivo. Em Platão, as leis não criam, apenas conservam. Para retornar ao ponto de partida, ele não conta senão com o ciclo que rege a mudança, que consiste num devenir oscilatório, em que cada fase repete, ao revés, a precedente (Mito do Político. 269 a sq).
A UNIDADE SOCIAL
Se o fundador da cidade tem a sua disposição, por golpe feliz ou graças à providência dos deuses, os caracteres precisos, pode então instituir uma cidade justa. É suficiente, para isso, regulamentar a atividade dos cidadãos, de maneira tal que “cada um aplique sua atividade a uma só função, para a qual está naturalmente apto, a fim de que cada um, tendo sua própria ocupação, não seja múltiplo, mas uno”; e que se possa, desse modo, ver surgir uma cidade una e não múltipla (República, 423 d). Assim, seria necessária uma regulamentação da riqueza, para localizar o artesão em seu ofício, pois “um oleiro que enriqueça, desejará ainda voltar a seu ofício? Evidentemente, não, e converter-se-á, então, em mau oleiro” (421 d). Contudo, não é preciso que ele seja pobre, a ponto de não poder adquirir os instrumentos indispensáveis. Disso resultam leis estranhas concernentes aos guardiães da cidade; tudo fica subordinado à necessidade de manter entre eles perfeita união. A maior desgraça para a cidade consiste na divisão. Ora, uma das grandes causas da divisão é o regime de separação da cidade em famílias, de onde se depreende que cada um tem, individualmente, dores e prazeres. A comunidade de mulheres, de crianças e de bens é a única maneira de unir os guardiães entre si; presos à regulamentação de creches públicas, na ignorância dos laços naturais de filiação, todos, segundo a idade, terão, a respeito de todos, os sentimentos de filho ou pai (462 a sq.; 464 d).
Como, por outra parte, a cidade já não se preocupa com a diferença entre pessoas, mas somente com diferenças entre aptidões, ao definir o cidadão unicamente em relação a suas ocupações, deduz-se que não será preciso dar à mulher, na cidade, um lugar diferente daquele do homem. Do ponto de vista social, não há, entre homens e mulheres, qualquer diferença. Haverá mulheres artesãs; outras manifestarão paixões generosas de defesa da cidade; outras, ainda, a sabedoria dos guardiães (454 b -457 b)
Finalmente, se se consideram apenas as funções, e não os elementos humanos que as cumprem, a sociologia platônica converte-se, simplesmente, em uma psicologia e uma moral. As funções exercidas na cidade corresponderão às faculdades da alma individual: à do soldado, a paixão da cólera; â do guardião, a inteligência refletida. Como cada função possui virtude por excelência, a temperança, para o artesão, a coragem, para o soldado, e a prudência, para o guardião, segue-se que cada faculdade possuirá a sua. E, como a justiça na cidade consiste, para cada um, em fazer o que lhe é destinado, a classe superior dirigindo, e a inferior obedecendo, a justiça, no indivíduo, consistirá também em manter cada parte da alma em seu papel natural. Assim, o estudo da sociedade permite ler, mais facilmente, a alma do indivíduo (453 a; 443 e sq).
DECADÊNCIA DA CIDADE
Toda moral, como toda política, consiste em fixar essas relações naturais da maneira mais sólida possível. Mas a localização absoluta é impossível, porque “tudo que nasce está sujeito à destruição” (546 a). Uma vez alterada a harmonia complexa da unidade e da justiça sociais, observa-se uma decadência mais ou menos rápida; e passando por uma série regular de governos, nascidos uns dos outros, a cidade degenera, gradativamente, do governo mais justo ao mais injusto. Não há, para Platão, outro tipo de evolução natural e espontânea, senão o deperecimento. Os livros VIII e IX da República, que revelam tantos traços extraídos de sua experiência política e psicológica, não deixam qualquer esperança de deter o movimento, uma vez que é desencadeado por negligência dos primeiros magistrados da cidade (545 d). Ao estado de harmonia sucede um estado de cisão e luta, que marcam, segundo o grau, as diversas formas de governo. As lutas e dissenções civis acompanham-se, além disso, de uma situação de desordem e desequilíbrio, que encontram correspondência na alma de cada cidadão. A cada tipo de sociedade corresponde um tipo psicológico.
À melhor constituição não deixa de ocorrer luta entre uma “raça de ouro e de prata”, que quer manter a virtude e a tradição; e uma “raça de ferro e de bronze”, dominada pelo desejo de lucro. Essa luta termina por uma espécie de lei agrária, onde terras e casas são distribuídas e fixadas em propriedade. Começa o regime de propriedade individual, e com ele a escravidão dos trabalhadores. A casta dominante converte-se na dos guerreiros, que pouco cuidam do estudo e muito da ginástica e da guerra, casta ambiciosa e zelosa, que se entrega, pouco a pouco, ao prazer das riquezas (546 d – 549 d).
É o domínio dos ricos que caracteriza a terceira forma da cidade, a que Platão chama de oligarquia. O censo é a condição de acesso às magistraturas. A unidade precária do governo precedente desfaz-se de novo. Há, então, na cidade, duas entidades distintas: a dos pobres e a dos ricos; indigência, de um lado; luxo, de outro. E, por toda parte, preponderância, não mais devida à paixão generosa, como nos governos antecedentes, mas aos desejos inferiores. Os pobres, que os ricos são obrigados a armar para defesa da cidade, constituem, além disso, uma preocupação constante (550 c sq.).
O desejo insaciável da riqueza é causa da perda dos oligarcas; para enriquecer, mediante a usura, favorecem a intemperança dos jovens ricos e dos nobres. Os jovens, reduzidos à indigência, mas conservando toda a altivez das origens, são os verdadeiros fautores da revolução, que conduz à democracia: endurecidos pela vida que levam, não hesitam em vencer os ricos, debilitados pelo luxo. A democracia é, essencialmente, a vitória dos pobres; sua palavra de ordem é a liberdade. Cada qual adota o gênero de vida que lhe apraz. Nada mais variado e menos unificado do que uma democracia como a de Atenas, verdadeiro “armazém” de constituições, onde o político pode encontrar modelos. O homem democrático interessa-se por tudo, até pela filosofia. Da liberdade nasce a igualdade, uma espécie de “igualdade para os desiguais”, que decorre da ausência de autoridade (557-563).
O desejo insaciável de liberdade causa a perda da democracia e muda-lhe a forma social em sua contrária, a tirania. Aqueles que presidem aos destinos da cidade não podem usufruir do poder, exigem cada vez mais, e se convertem em tiranos. O tirano é a antítese completa do guardião da cidade ideal. É, por excelência, o indivíduo completamente isolado, que rompe todos os vínculos com a sociedade, exilando os bons, dos quais tem medo, vivendo em meio a um corpo de guardas, os quais libertou do seu estado de escravidão. A dissociação da cidade atinge o auge; o tirano solta rédeas às paixões mais selvagens, que o homem bem educado não conhece senão em sonho; é o indivíduo arvorando-se em absoluto, “sem amigos, sempre déspota ou escravo, mas ignorando a verdadeira liberdade e a amizade verdadeira” (563 e – 574 d).