Em relação a todo este parágrafo, cf. J. Wahl, Etude sur le «Parménide» de Platon (Paris, 1926). Joseph Moreau, «Acerca da significação do Parmênides», in Le sens du Platonisme, p. 303. Victor Brochard, «La théorie platonicienne de la participation d’après le Parménide et Le Sophiste» (in Etudes de philo, ancienne et de philo, moderne, Paris, 1926). A. Diès, La définition de l’Etre et la nature des idées dans «Le Sophiste» de Platon (Paris, 1932). Rodier, «Remarques sur le Philèbe», in Etudes de Philosophie grecque, Paris, 1926). A. E. Taylor, The Parmenides of Plato (Oxford, 1934).
Segundo aquilo que foi dito anteriormente, compreende-se que o problema da participação das ideias não deve ser entendido como o problema da participação das ideias no mundo sensível, mas antes como o problema da participação das ideias entre si. Para o examinar devemos admitir a cronologia: Parmênides, Sofista, Filebo, Timeu. A maioria dos comentadores de Platão concordam em que, no Parmênides, Platão expõe as dificuldades que encontrarão uma solução no Sofista.
A) O Parmênides: Sócrates é ainda novo na altura deste diálogo, desempenha sobretudo o papel de interlocutor e é Parmênides quem conduz a discussão. Este diálogo contém duas partes. Na primeira, Sócrates diz a Zenão (129 abcde) que não é de admirar que as coisas sejam ao mesmo tempo unas e múltiplas. Sou, por exemplo, um dos homens que estão aqui, mas sou múltiplo porque o meu lado esquerdo é diferente do meu lado direito, não sou o mesmo de frente e de perfil, etc. Mas será possível dizer o mesmo das ideias: «Que se comece por distinguir e pôr de lado, na sua realidade própria, as ideias como a semelhança, a dissemelhança, a pluralidade, a unidade, o repouso, o movimento, e todas as outras essências iguais; que se demonstre em seguida que são capazes de se misturar e de se separar; é então, ó Zenão, que eu ficaria maravilhado» (129 de). Para poder responder a esta questão será necessário fazermos o difícil exercício que preenche toda a segunda parte do diálogo; vai ser necessário, «se houver pluralidade, procurar o que daí deve resultar para os plurais era relação a eles próprios e em relação ao Uno, e para o Uno em relação a si próprio e em relação aos plurais; se não houver pluralidade, examinar ainda aquilo que resultará daí para o Uno e para os plurais, seja em relação a si próprios, seja uns em relação aos outros» (136 a). Vejamos todas as subtis hipóteses que formula Parmênides.
1) Se posicionarmos o Uno (ei hen estin 137c); se existir o Uno, se o posicionarmos em absoluto, como quer o eleatismo, esse Uno exclui qualquer múltiplo, qualquer parcelamento, qualquer modificação, qualquer ideia de tempo contrária à sua unidade. Esse Uno permanece portanto incognoscível e inefável. Estamos então talvez condenados a dizer apenas: o Uno é, e nada mais; talvez deste modo fôssemos em direção a essa espécie de mutismo por meio do princípio de identidade ao qual nos queriam condenar Antísteno e os Megáricos. Deste modo, o Uno posicionado em absoluto não tem nem nome, nem razão, nem ciência, nem aparência de Uno, não participa no ousia.
2) Se o Uno é ser (142 b), aqui o Uno já não é predicado como na primeira hipótese, é sujeito de um juízo de existência: se o Uno existir. Então, neste caso, admite todos os contrários, encontra-se empenhado numa série de relações e de participações infinita, é finalmente múltiplo e dele tudo se pode dizer.
3) Esta terceira análise coloca um problema aos comentadores pois não faz parte do plano primitivo da discussão (136 abe); Brochard não fala dela e Taylor vê nela uma sombra do cenário, um erro artístico de Platão. Platão diz-mos que se o Uno é por um lado uno e múltiplo e por outro lado nem uno nem múltiplo, há necessariamente um momento em que participa do ser visto que é, e um momento em que não participa do ser visto que não é (155 e). Esta mudança não se pode fazer nem no movimento, nem no repouso, nem no tempo, só se pode fazer no instante (exaiphnes). O instante é portanto aquilo que assegura a passagem da primeira para a segunda hipótese, é a unidade do ser e do não-ser. Como diz Jean Wahl: «Aquilo que Platão tende a mostrar é que o espírito pode ir para além do campo em que estava encerrado até aqui; que se pode, afinal, furar o tempo. (…) A ideia do devir implica a ideia de um fora do tempo onde cada um dos qualificativos já não se aplica ao objeto que devém.»1 Nesta espécie de síntese do ser e do não-ser que constitui o instante e onde o eleatismo e o heraclitianismo parecem conciliar-se, podemos ter um vislumbre da filosofia de Hegel.
Vamos agora estudar aquilo que acontece aos «outros» nas duas primeiras hipóteses, notando com J. Wahl que «as hipóteses acumulam-se mas não se destroem».
4) Se o Uno é um ser (segunda hipótese), que acontece aos outros, ou seja, as coisas diferentes do Uno (157 b)? Visto que essas outras coisas são diferentes do Uno, é porque têm partes; mas partes de quê, senão de um certo Uno que chamamos todo, unidade, conjunto, etc? Os outros participam, portanto, do múltiplo e do Uno; o múltiplo é por conseguinte finito e infinito, semelhante e dissemelhante a si mesmo, movimento e repouso: possui todos os contrários. Por conseguinte, o múltiplo que só seria múltiplo e o Uno que só seria Uno não poderiam ser conhecidos. Como sublinha J. Wahl, encontramo-nos aqui no ponto culminante do diálogo: «O Parmênides do diálogo indica deste modo ao jovem Sócrates a maneira de refutar o Parmênides do poema, mostrando que o outro não sendo uno, deve ser mais cie um, sob pena de não ser. Entre o Uno e o Nada, o Parmênides histórico não colocava nada; o mestre eleático de Sócrates reintroduz a ideia de ‘outro sem ser o Uno’ — que só pode ser o múltiplo. Entre o Uno e o Nada vem colocar-se a pluralidade.» Assim, as ideias de alteridade e de pluralidade estão interligadas e implicam uma relação com a ideia de unidade, que é precisamente a participação. Como diz ainda J. Wahl: «A multiplicidade implica um Uno múltiplo. O Parmênides do poema dizia que o ser é cheio de seres, no plural. Este Uno não é, por isso, menos completo, poque possui partes. Esta multiplicidade não deixa por isso de ser um real «cada um», pois participa do Uno. (…) Há portanto uma ação do Uno sobre as outras coisas que fazem com que apareçam como unidades; o Uno está nelas presente. (…) Se outro que não o Uno pode ser arrumado em conjuntos que são unidades determinadas, pode-o apenas por participar no Uno. Se o separarmos do Uno, dissemina-se numa natureza amorfa, infinita. (…) A methexis já não é impossível como na primeira hipótese; já não é uma falta methexis, como na segunda. Chegamos ao verdadeiro platonismo, em que as ideias são cada uma em si e unidas umas às outras. Doravante podemos dizer que o Uno é uma ideia e que a ideia é uma unidade.»
5) Se posicionarmos o uno (primeira hipótese), que acontece aos outros (159 b) ?2 Os outros estando à parte do Uno, nada poderemos deles dizer, nada mais, aliás, que diremos do Uno; o eleatismo perde assim tanto o múltiplo como o Uno.
Vejamos agora as hipóteses da negação.
6) Se o Uno não é (160 b), é a negação da primeira hipótese. Para dizer que o Uno não é temos de saber de que estamos a falar e temos por conseguinte de ter alguma ciência do Uno. Se aquilo que dizemos, isto é, que o Uno não é, for verdadeiro, existe portanto uma espécie de ser do não-ser e regressamos ao problema da segunda hipótese com a participação no repouso e no movimento, no semelhante e no dissemelhante, em resumo, em todos os contrários. Mas, visto que se posicionou que o Uno não era, trata-se de uma aparência de existência. Estamos aqui no campo do devir e da opinião.
7) Se não posicionarmos o Uno (163 b), é a negação da primeira hipótese; de um modo mais nítido ainda do que nesta, o Uno não pode ser o objeto de nenhuma ciência, nem de nenhuma opinião, e novamente estamos condenados ao mutismo.
O que acontecerá agora aos «outros» nestas duas últimas hipóteses negativas?
8) O que acontecerá aos outros no caso da sexta hipótese, ou seja, se o Uno não é (164 b)? Como diz claramente V. Brochard: «As outras coisas são outras, não em relação à unidade visto que esta não existe, mas em relação a si próprias, e visto que a unidade não existe, é unicamente graças à sua multitude que podem ser aquilo que são, ou seja, outras umas das outras. No entanto, para diferir umas das outras, é necessário que cada uma delas, apesar de essencialmente múltipla, tenha pelo menos a aparência da unidade… Estamos portanto em presença de uma poeira de seres, de uma aparência que nos escapa continuamente como um sonho; mas isto não impede que esta aparência evanescente pareça possuir um número porque antes de tudo parece una. (…) Ao atribuir a existência às outras coisas, foi-lhes explicitamente reconhecida uma unidade; apesar de o Uno não existir, subsiste portanto algo dele, uma memória, um rasto. (…) O Uno projeta assim, do fundo do seu nada, uma espécie de inteligibilidade crepuscular que é tudo aquilo que podemos saber acerca do resto das coisas. Parece, de fato, que se trata aqui não apenas do devir ou da sensação, mas da aparência do devir, do simulacro ou do sonho que Platão quis explicar dialeticamente. Talvez exista uma alusão a esta teoria na passagem do Timeu em que a matéria nos é apresentada como vislumbrada através de um sonho.»3
9) Que acontecerá aos outros se o Uno não é posicionado (caso da sétima hipótese) (165 e)? Neste caso, «se o Uno não é, nada é» (166 c); efetivamente, não se poderá sequer dizer das coisas que são múltiplas porque qualquer multiplicidade pressupõe a unidade. Assim, se não se posicionar o Uno, o múltiplo também não é e tudo se esvanece.
Que conclusão tirar deste diálogo no qual certos comentadores viram apenas um jogo verbal parodiando as discussões dos Eleatas? O diálogo conclui com estas palavras: «Que o Uno seja ou não seja, ele e os outros, ao que parece, e na sua relação com si mesmos e na sua relação mútua, em todos os pontos de vista possíveis, são tudo e não são nada, parecem tudo e não parecem nada» (166 c). Por outras palavras: ou se pode afirmar tudo acerca de tudo e então nada é verdadeiro porque tudo é verdadeiro; ou não se pode dizer nada acerca de nada e então, mais uma vez, nada é verdadeiro. Eis o dilema sem saída que nos apresenta o Parmênides, é a ele que nos condenam as posições daqueles que Platão quer refutar.
Quanto à solução de Platão, está exposta no Sofista, que é o seguimento lógico do Parmênides; Platão recusa o dilema ou tudo é verdadeiro ou nada é verdadeiro, que nos condena ao cepticismo, ao laxismo ou ao mutismo que geram o não saber ou o hiper-saber. Para Platão, como diz V. Brochard: «Existe um meio termo que é dizer: existem ideias que se podem afirmar umas das outras, e outras que não se podem combinar entre si. Para justificar a alternativa é necessário provar que o ser pode participar no não-ser, e o não-ser no ser: eis o que o Parmênides tinha mostrado para um caso particular e que o Sofista irá estabelecer de uma maneira geral. Mas isto só não é suficiente; é ainda necessário estabelecer que todas as ideias não participam indistintamente umas das outras, mas sim que a sua ligação está submetida a certas leis ou a certas regras que não relevam do simples raciocínio e que só uma ciência real ou divina pode atingir: a dialética. Eis o que o Parmênides não disse e que é evidenciado no Sofista.»4
B) O Sofista: Tem por subtítulo Do Ser, mas visa chegar a uma definição do erro; Sócrates assiste ao diálogo, mas é um estrangeiro, de Eleia, que dirige a discussão, e Teeteto é o seu principal interlocutor. O estrangeiro procura, com Teeteto, chegar a uma definição do sofista. Definem-no como um caçador interessado em jovens ricos, como um negociante, um retalhante ou um vendedor das ciências da alma, como um atleta do discurso. Podemos por fim dizer que é um fabricante de prestígios que apenas ensina uma arte do simulacro (236 c). Mas eis que no momento em que pensamos ter definido o sofista, este escapa-se-nos: ensinar o erro, a ilusão, o simulacro, é no fundo falar do não-ser; ora se nos apropriarmos da célebre fórmula do nosso pai comum, Parmênides, segundo a qual:
Não, nunca vergarás à força os não-seres a ser; desta via de pesquisa afasta o teu pensamento5), somos obrigados a admitir «que não se poderia legitimamente pronunciar, nem dizer, nem pensar o não-ser em si mesmo; é pelo contrário impensável, inefável, impronunciável, inexprimível» (283 c). Pode então o sofista refugiar-se num «refúgio impraticável» (239 c) pois vai dizermos que, se não falar do não-ser, não o podemos acusar de ensinar uma arte da ilusão, ou seja, uma arte que fala daquilo que não é. Como dizer do sofista que é ele quem fala desse não-ser que é o erro ou o simulacro, visto que Parmênides nos ensinou que não podíamos dizer nada daquilo que não é? Eis-nos portanto na impossibilidade de definir não só o sofista como inclusivamente o erro.
O único meio de sair desta dificuldade é o de cometer o «parricídio» (241 d), que consiste em abandonar a tese de Parmênides, e de estabelecer «que o não-ser é, de uma certa maneira, e que o ser, por seu lado, de uma certa maneira não é» (241 d). Mas por não-ser devemos entender não o contrário do ser, mas outro ser (256 de e seg.); o não-ser é, portanto, a alteridade e não o impensável contrário absoluto do ser, por exemplo, o movimento é o não-ser do repouso que é ele próprio o não-ser do movimento. Deste modo, em volta de cada ideia existe multiplicidade de ser e infinita quantidade de não-ser (256 e); cada ideia define um ser, mas esse ser não é único, um ser é diferente daquilo que são os outros seres e «tantas vezes são os outros, tantas vezes o ser não é» (257 a).
O ser não é portanto um absoluto que se manteria aí, hirto, imóvel, venerável e sagrado e sem espírito (249 a), como parece querer Parmênides; se assim fosse estaríamos reduzidos às argucias dos Megáricos e de Antísteno (251 bc) que nos condenam à tautologia do princípio de identidade e pretendem que não podemos dizer: o homem é bom, mas apenas o homem é homem ou o bom é bom, sob pena de identificar uma coisa com aquilo que não é ela. O ser é relação e é por isso que não nos podemos enfileirar com os eleatas, o ser só é mesmo na relação: «Quando uma parte da natureza do outro e uma parte da do ser se opõem mutuamente, essa oposição (antithesis) não é, se assim se pode dizer, menos ser que o próprio ser; pois não é o contrário do ser que ela exprime, mas simplesmente uma coisa que não é ele» (258 b). O ser não está portanto nem nisto, nem naquilo, é sempre um «terceiro termo» (250 b).
Platão distingue então cinco gêneros supremos (250 b): o ser, que pode unir-se ao movimento e ao repouso mas que não se reduz nem a um nem a outro, senão seria necessário identificar o movimento com o repouso — o movimento — o repouso — e, cada um destes três gêneros sendo o mesmo que si próprio e outro que os outros, é preciso acrescentar o mesmo e o outro. Platão pode então formular a proposição essencial de todo o Sofista: «Há uma mistura mútua dos gêneros. O ser e o outro penetram todos e compenetram-se mutuamente. Deste modo o outro participando do ser, em razão dessa participação, é; é, no entanto, não aquilo que participa, mas outro, e, por ser outro que não o ser, é, pela mais manifesta necessidade, não-ser. O ser, por sua vez, participando do outro, será portanto outro que não o resto dos gêneros. Outro que não eles todos, não é portanto nem nenhum deles separadamente, nem a totalidade dos outros menos si próprio; de maneira que o ser, incontestavelmente ainda, milhares e milhares de vezes não é, e os outros, seja individualmente seja na sua totalidade, sob múltiplos ângulos, são, e, sob múltiplos ângulos, não são» (259 b). Assim, o ser «corre por todos os gêneros». Que concluir a partir de todos estes desenvolvimentos que poderiam parecer apenas habilidades verbais? Não pretendemos propor, depois de tantos outros e em poucas linhas, uma interpretação nova e original do platonismo, mas a filosofia de Platão parece-nos organizar-se em roda do problema das relações do lagos e da separação.
J. Wahl, Essai sur le «Parménide» de Platon, pp. 167-170; acerca desta terceira hipótese ver também J. Moreau, Revue philosophique, 1944, p. 116. ↩
Robin, Platón, p. 135, n.° 1, diz que visto que a fórmula hen ei estin é a mesma que na segunda hipótese, a quinta prolonga a segunda; é preferível com Brochard, Diés, Wahl e Moreau fiarmo-nos no espirito e não na letra. ↩
V. Brochard, Etudes de philo. ancienne et philo. moderne, p. 125. A passagem do Timeu à qual alude Brochard (52 b) fala da chora que se traduz geralmente por: lugar, espaço. Brochard identifica o lugar e a matéria em Platão seguindo para isso uma afirmação de Aristóteles (Física, IV, 2 209 b, 12) que é bastante discutível. ↩
V. Brochard, Et. de philo. anc. et de philo. mod., p. 130. ↩