O noûs em Aristóteles

8. O princípio transcendente de Aristóteles é, primeiro e antes de tudo, um «motor», desenvolvido a partir de uma série de argumentos que derivam da natureza da kinesis e da genesis (ver kinoun 7-10) e que Aristóteles, tal como Anaxágoras, escolheu para identificar como um princípio inteligente, o noûs. Mas diferentemente de Anaxágoras, ele está agora perante uma «separação» entre o material e o imaterial e assim tem de recorrer, mesmo no caso desta causa eficiente, à força motriz da causalidade final (ver kinoun 7, sympatheia 7). Tem, geralmente, uma explicação da intelecção (noesis) superiormente desenvolvida, baseada na sua teoria da energeia/dynamis que aplica também ao seu proton kinoun.

9. No De anima Aristóteles descrevera o conhecimento, em todas as suas manifestações, como o tornar-se outro, mas só quanto à sua forma, não quanto à sua matéria (III, 425b, 431b 432a). Para falar mais especificamente da noesis (q. V. 12), é uma passagem da potência ao ato (energeia) ao tornar-se a forma inteligível de outro, e isto é efetuado ao conhecer este inteligível na sua imagem sensível (III, 431b). Agora o proton kinoun é descrito como noûs e a sua energeia como noesis (Metafísica 1072b), mas é evidente que isto deve diferir um pouco das operações descritas no De anima. No primeiro caso, o noûs cósmico não é ativado por nada Visto que isto seria dizer que está em potência em relação a qualquer outra coisa e que, portanto, não é um motor imóvel. O noûs cósmico, assim, não se torna o seu objeto; é o seu objeto e isto eternamente visto que o seu objeto está sempre presente (loc. cit.). Deus pensa-se a si próprio; ele é pensamento do pensamento (noesis noeseos; ibid. 1074b), ou talvez pensamento acerca dele próprio pensando. Esta atividade contrasta explicitamente com todas as outras formas de pensamento, episteme, aisthesis, doxa, dianoia, cujo primeiro objeto de operação é «outro» (allon) e então pensando-se a si próprias, mas este último só acidentalmente (parergon; loc. cit.; para o corolário disto, desenvolvido por Proclo, de que Deus se conhece a si próprio diretamente e os noeta múltiplos só acidentalmente, ver. noeton 4).

10. Em vários lugares Aristóteles compara a noesis humana com a divina. Dado que o homem é um composto (syntheton) compreendendo um corpo e uma alma noética, a sua noesis é intermitente e exaustiva porque envolve uma passagem da potência ao ato (Metafísica 1050b, 1072b; Ethica Nichomacos X, 1175a). Mas a noesis, não obstante a natureza exaustiva da sua operação em nós, é, contudo, a função (ergon q. v.) própria tanto de Deus como do homem. E quando praticamos a contemplação (theoria) aproximamo-nos muitíssimo da vida de Deus e contribuímos muito para a nossa própria felicidade (Ethica Nichomacos X, 1177b-1178a, 1178b). Mas a noesis humana difere da sua contraparte divina em mais do que a sua intermitência. A primeira não é apenas mediata (i. e., conhece os noeta em imagens visíveis), é também discursiva; julga combinando e separando conceitos (ver noesis 12). Aristóteles tem de fato uma forma intuitiva de conhecimento humano, que chama noûs, mas parece ser postulada em bases epistemológicas e nunca aparece num contexto «místico» (ver epagoge 3, gnorimon 2).

11. O funcionamento da faculdade aristotélica do noûs é claro nas suas linhas gerais, mas a aplicação estrita dos princípios do ato e da potência levam a uma série de obscuridades. Parece haver uma distinção da faculdade dentro da alma. O intelecto tem de ser potencialmente qualquer coisa que ela conhecerá atualmente. Mas toda a passagem da potência ao ato requer um princípio já em ato (o mesmo argumento que leva ao Primeiro Motor) e assim Aristóteles postula outro intelecto que «faz todas as coisas». Estas são distinções (diaphorai) que ocorrem na alma e os dois intelectos estão um para o outro como a matéria para a forma (De anima III, 430a). Um, o intelecto passivo (pathetikos noûs), posteriormente chamado «hílico» (hylikos), é perecível. O outro, descrito como «uma espécie de estado (hexis) semelhante ao sol», é separável (choristos), não afetado (apathes), não misturado (amiges), e essencialmente uma energeia. Quando é separado (choristeis), ele por si é imortal e eterno (aidion).

12. Tudo isto ocorre num breve passo no De anima (III, 5), e esse juntamente com um passo paralelo no De gen. anim. II, 736b que afirma que o noûs, que só por si é divino e não tem ligação com qualquer energeia física, vem «do exterior» (thyrathen), provocou mais comentários do que qualquer outro texto de Aristóteles. Parece bastante claro que conhecemos porque o noûs pathetikos está ativado, i. e., torna-se a forma inteligível do objeto conhecido em virtude de operação de outra «parte» do noûs que já está em ato (ver Metafísica 1049b). Mas a origem e a natureza exata da operação deste último noûs poietikos ou inteleccão agente, como veio a ser conhecido, foram muito debatidas.

13. A maioria das complexidades posteriores entronca numa série de ensaios sobre o assunto do peripatético Alexandre de Afrodísias que distinguiu outra fase entre o noûs pathetikos e o poietikos. Esta é o intelecto in habitu que resulta do intelecto puramente passivo (também mais tarde identificado com a imaginação) que se torna potencialmente inteligível por ser iluminado paio noûs poietikos e deste modo adquire um «estado» (hexis, habitus) de inteligibilidade (De intellectu, p. 107). Além disso compara o noûs poietikos como é descrito no De anima com o do Primeiro Motor na Metafísica e conclui que o intelecto agente é, de fato, a primeira causa (proton aition; De anima, p. 89), identificação que mais tarde seria adaptada à crença neoplatônica duma série de inteligências intermediárias, em que a última emanação, o noûs poietikos de Aristóteles, se torna o dador de formas, i. e., as formas inteligíveis não são extraídas das phantasiai materiais, como em Aristóteles, mas são dadas ao intelecto humano por uma inteligência superior (ver 20 infra e noeton 6).