Enéada I, 6, 5: A realidade da beleza pensada a partir de seu contrário, a feiura

Tradução para o português de Américo Sommerman
Retirado de “Do Belo, tratado de Plotino

5. Então, temos de fazer a seguinte pergunta aos amorosos da beleza que está além dos sentidos: “O que sentis ante as belas condutas, os belos caracteres, os modos virtuosos e a beleza de alma? O que sentis quando vedes a vossa própria beleza interior? Que deleite, emoção e desejo de estarem convosco mesmos é esse que recolhendo-vos em vosso verdadeiro eu vos arrebata para fora do corpo? Pois é isso que experimentam os verdadeiros amorosos. Porém, o que os faz experimentar isso? Não é forma, cor ou dimensão alguma, mas a alma, que não tem cor, mas na qual fulge a sabedoria e os resplendores de todas as outras virtudes. Vós experimentais isso quando vendes em vós mesmos ou em outra pessoa a grandeza de alma, um caracter justo, a pureza de costumes, a coragem de uma face nobre, a dignidade – esse respeito por si mesmo que advém de uma alma calma, serena e impassível – e, brilhando sobre tudo isso, a luz da Inteligência, cuja essência é divina. Todas essa qualidades nobres devem ser reverenciadas e amadas, mas por que são chamadas belas? Porque realmente existem como belezas e quem quer que as veja afirma que elas tem uma existência real. Porém, o que significa a expressão “existência real”? Sem dúvida elas são belas, mas a razão também deseja saber por que fazem com que ao vê-las o amor inflame-se na alma. O que é essa graça, esse resplendor que emana de todas as virtudes? Talvez se considerarmos o seu contrário, a feiura da alma, perguntarmos o que ele é e como surge, possamos responder mais facilmente a questão anterior.

Imaginemos uma alma feia, dissoluta e injusta, plena de todas as concupiscências e desequilíbrios interiores, sempre temerosa devido à sua covardia invejosa devido à sua mesquinharia, que só pensa nas coisas perecíveis e baixas, é sempre perversa, deleita-se com os prazeres impuros, vive a vida das paixões corporais e tem prazer com a sua própria feiura. Só podemos dizer que essa feiura adveio a ela como um mal adquirido, que a suja, torna-a impura, a impregna com grandes males e com isso sua vida e suas sensações perdem sua pureza, de modo que ela leva uma vida obscurecida pela mistura com o mal, uma vida mesclada de morte. Não mais vê o que uma alma deve ver, não mais lhe é permitido permanecer em si mesma, pois é incessantemente atraída para a região exterior, inferior e obscura. Impura, arrastada para todos os lados pelas atrações dos objetos sensíveis, muito infectada pela natureza corporal, absorvendo muita matéria e acolhendo em si uma Forma (eidos) diferente da sua, troca a sua Forma essencial por uma natureza que lhe é estrangeira. É como um homem que mergulha no lodo: sua beleza deixa de ser visível, pois só o lodo passa a ser visível. A feiura adveio a ele pela adição de uma matéria estrangeira e se quer tornar a ser belo tem de se lavar e se limpar para tornar a ser o que era. Portanto, teríamos razão em dizer que a alma torna-se feia pela mistura com algo estrangeiro, por mergulhar no corpo e na matéria. A feiura para a alma é deixar de ser limpa e sem mistura, do mesmo modo que para o ouro é estar cheio de terra. Se a terra é retirada, permanece apenas o ouro: ele volta a ser belo quando é separado das outras matérias e permanece apenas em si mesmo. Do mesmo modo, quando a alma é purificada dos desejos que lhe advêm da relação muito estreita que tem com o corpo, é libertada de todas as paixões, purgada de tudo que adquiriu com a encarnação e permanecendo inteiramente só depõe toda a feiura que lhe vem de uma natureza diferente da sua.