República VI

Rocha Pereira

Excertos da Introdução de Maria Helena da Rocha Pereira, à sua tradução da “República

Os dois livros seguintes ocupar-se-ão, logicamente, da preparação do filósofo. Depois de enumerar as qualidades que o recomendam para ocupar os lugares de chefia e de analisar as causas do desfavor em que geralmente é tido, principia a esboçar a maneira deformar os guardiões (502c-d), a fim de eles procurarem alcançar o saber mais elevado (megiston mathema – 505a), cujo objeto é a ideia do bem, a ideia1 suprema que toma inteligível o mundo.

Toda esta parte constitui o que J. E. Raven designou por o «Ensaio sobre o Bem», definido este último do seguinte modo: «O Bem, para Platão, é, em primeiro lugar, e com mais evidência, a finalidade ou alvo da vida, o objeto supremo de todo o desígnio e toda a aspiração. Em segundo lugar, e mais surpreendentemente, é a condição do conhecimento, o que torna o mundo inteligível e o espírito inteligente. E em terceiro, último e mais importante lugar, é a causa criadora que sustenta todo o mundo e tudo o que ele contém, aquilo que dá a tudo o mais a sua própria existência»2. Um tríplice símile3 vai tornar a doutrina mais compreensível, explicando a relação entre o mundo visível e o mundo inteligível.

Poucos passos da República têm sido tão vivamente discutidos como estes, quer em si mesmos, quer nas relações entre os três. Essa longa discussão, não a vamos renovar aqui4. De acordo com a orientação exposta inicialmente, procuraremos apontar elementos que facilitem a reflexão, pondo em evidência os dados do texto em que o estudioso precisa de atentar, para basear a sua interpretação.

É o próprio texto, efetivamente, que afirma a relação entre os três símiles; do do Sol com o da Linha Dividida em VI 509c; e deste último com o da Caverna em VII 517a-c. Esta segunda equivalência tem sido, ela mesma, objeto de grandes discordâncias, até porque principia por se declarar, de uma forma um tanto vaga, que «este quadro deve agora aplicar-se a tudo quanto dissemos anteriormente» (517a-b), o que, na verdade, podia dizer respeito, em princípio, tanto a um como a outro dos símiles. Mas a continuação explicita que se deve comparar o mundo visível à caverna e o inteligível à ascensão dos prisioneiros ao mundo superior5.

Para empregar uma imagem tirada da própria República, diríamos que estes símiles encaixam uns nos outros como os contrapesos do fuso da Necessidade, no mito de Er (X. 616d-e), «que, na parte superior, tinham o rebordo visível como outros tantos círculos, formando um plano contínuo de um só fuso em volta da haste…»

Em primeiro lugar, temos, pois, a metáfora do Sol, que mostra que esse astro está para o mundo visível como o Bem para o sensível (VI. 507b-509d)6.

O segundo (VI. 509d-511e) consiste em imaginar uma linha para ser dividida em duas partes desiguais, cada uma das quais seria ainda seccionada segundo a mesma proporção. Se designarmos a linha por AB, o primeiro corte por C e os outros por D e E, e indo buscar ao texto as equivalências dos segmentos assim obtidos, podemos traçar o seguinte diagrama:

Portanto, o mundo visível (horata ou doxasta) tem em primeiro lugar uma zona de eikones («imagens», reflexos nas águas), conhecidos pela eikasia («suposição», ou, como outros preferem, «ilusão»). Num nível mais elevado, temos todos os seres vivos (zoa) e objetos do mundo, conhecidos através de pistis («fé»), O mundo inteligível (noeta) tem também dois sectores proporcionais a estes, o inferior e o superior, o primeiro apreendido através da dianoia («entendimento» ou «razão discursiva»). Nesta última distinção poderá residir, como alguns supõem, a finalidade principal da analogia: o contraste entre o conhecimento pela dianoia, que é o das ciências, e o que é pela noesis, que é o da filosofia. Mas não é menos importante a antinomia entre opinião e saber, entre doxa e sophia, que tínhamos visto ao terminar do Livro IV e vai tomar forma nítida na alegoria da Caverna (VII 514a-518b)

Francis Wolff

2 As razões da má reputação dos filósofos (VI, 488a-497a)

  • Os verdadeiros filósofos não são inúteis; é o Estado que não os utiliza

    A maior parte dos filósofos naturais são pervertidos pelo meio e sua educação, pela opinião da multidão enganada pelos “sofistas” que usurpam o nome de “filósofos”

    É impossível que o povo seja filósofo e necessário, nos Estados existentes, que ele critique as naturezas filosóficas até perverte-las. Nenhuma Estado é adaptado à filosofia, nenhuma filosofia é adaptada à vida política

3 No entanto, o governo dos filósofos não é impossível (VI, 487a – 502c)

  • A multidão pode ser conciliada com o governo dos filósofos se se pode faze-la ver o que o amor da sabedoria significa e que somente ele é capaz de tornar feliz um Estado

Eggers Lan

LIBRO VI
486a El alma filosófica

El alma filosófica suspira siempre por la totalidad íntegra de lo divino y de lo humano. Desde temprano es justa y mansa, bien dotada de memoria y facilidad de aprender.

487d Dificultades del ejercicio de la verdadera filosofía

Cuando las cualidades del alma filosófica (valentía, moderación, etc.) se nutren mal. arrancan al alma de la filosofía. Los que corrompen a los filósofos no son los sofistas sino los acusadores de éstos, que son los más grandes sofistas: la multitud en la asamblea, teatro, etc. Los sofistas no enseñan privadamente otra cosa que las convicciones que la multitud se forja cuando se congrega. Son muy pocos los que tratan dignamente con la filosofía, y, al no ver nada sano en la política, se alejan de ésta.

497a La juventud y la filosofía

Cuando los adolescentes abordan la filosofía, al llegar a su parte más difícil, la relativa a los conceptos abstractos (tò peri toùs lógous), la abandonan. En la adolescencia hay que darles una educación apropiada a la edad, y, sólo cuando la fuerza corporal declina, hacerlos ocuparse de la filosofía.

499e Posibilidad de persuadir a la multitud

La multitud está mal dispuesta con la filosofía porque nunca ha visto un filósofo como el descrito, pero se le puede persuadir de que lo dicho es verdad.

502c El objeto del estudio supremo

Hay que probar a los guardianes en la práctica de los estudios superiores, para ver si son capaces de llegar hasta el objeto del estudio supremo, la idea del Bien, que es algo superior a la justicia.

506c Alegoría del sol

Las cosas múltiples son vistas. Las Ideas pensadas. Lo que es el sol en el ámbito visible respecto a la vista y de lo que se ve, es la Idea del Bien en el ámbito inteligible (noeiòs töpos) respecto del intelecto (noûs) y de lo que se intelige, o sea, de las Ideas. Así como el sol aporta a las cosas visibles la propiedad de ser vistas y también su vida, así la Idea del Bien confiere a las Ideas el poder de ser conocidas pero además el existir (tö eînai) y la esencia (ousía). aunque ella misma no sea esencia sino que esté más allá de la esencia.

509d Alegoría de la línea

Dividida una línea en dos secciones desiguales, y cada una de ellas en otras dos, tendremos, en la sección visible, una subsección de imágenes (sombras, reflejos) y otra de la cual en la primera hay imágenes (seres vivos, artefactos). A su vez, en la primera subsección de la parte inteligible, el alma se sirve de supuestos (hypothéseis), sin marchar hasta un principio) (arché) sino hacia la conclusión. En la otra subsección parte de supuestos, pero avanza por medio de Ideas hasta llegar al principio no supuesto (anypòthetos arché). La sección visible se conoce mediante la opinión y. dentro de ella, la subsección de imágenes por la conjetura (eikasía) y la otra por la creencia (pístis); la sección Inteligible es conocida mediante la inteligencia (noûs): dentro de ella la subsección inferior mediante el pensamiento discursivo (diánoia), la superior por el intelecto (noûs).

G.R.F.Ferrari

484a: Given the superior discernment of philosophers, Socrates continues, it is to them that the city should look for guidance, provided they can also be shown to be capable of gaining practical experience and of achieving the full range of human virtue. The character traits of the philosopher do in fact cover this range, being love of learning, truthfulness, self-discipline, greatness of spirit, courage, justice, quickness of mind, good memory, refinement and charm (485a). – 487a: Adeimantus objects that actual philosophers are either useless or bad. Socrates responds with an analogy (the ship of state) to show that it is not philosophers who are to blame for their uselessness, but those who refuse to make use of them (488a). He describes how the philosophic nature tends, because of its very excellence, to become distorted by society, which would ignore a less outstanding character (489e). He warns against various impostors who claim the mantle of philosophy (495c), and who far outnumber the few philosophers who manage to escape corruption by society (496b). He explains how it is possible for a city to cope with the challenge of philosophy (497d), and to become free of the prejudice against it (500a). He concludes that Callipolis is both optimal and not unfeasible (502c). – 502d: Turning to the question of how philosopher-kings should be educated, Socrates argues that their most important branch of study will be the study of the good (505a), and offers three analogies to explain it: (i) the sun (507a); (ii) the line (509d).


  1. Mantemos, apesar de todos os seus inconvenientes, a versão tradicional (que é afinal uma transliteração) da palavra grega idea ou eidos (uma excepção em 486d; cf. n. 1 ao Livro VI). A moderna crítica inglesa prefere geralmente dizer «forma» (form), para salientar o aspecto visual que determinou a escolha desse vocábulo (e.g., J. Ferguson, Plato’s Republic Book X, p. 127: «eidos significa basicamente o aspecto que uma coisa tem»). N. R. Murphy (The Interpretation of Plato’s Republic, p. 130) entende que Platão usou a palavra como simples meio abreviado de se referir à «coisa em si», «o que cada coisa é». Mas talvez a definição mais rigorosa continue a ser a que deu R. L. Nettleship em 1880 (The Theory of Education in Plato’s Republic, p. 109): «Ao elemento de realidade que o seu espírito descobria ou supunha em toda a parte, por trás das aparências e alterações que a sensação nos mostra, deu o nome de forma».
    Para uma discussão clara e precisa sobre as dificuldades do problema, leia-se R. C. Cross and A. D. Woozley, Plato’s Republic A Philosophical Commentary, pp. 178-179. 

  2. Plato’s Thought in the Making, p. 130. 

  3. O processo é tradicionalmente designado por símile nos dois primeiros exemplos, embora N. R. Murphy (The Interpretation of Plato’s Republic, pp. 156-158) negue energicamente a propriedade dessa nomenclatura em relação ao segundo. Outros preferem dizer alegoria, mas o nome só se aplica perfeitamente ao terceiro exemplo. Note-se que Platão chama eikon (imagem) à alegoria da Caverna (VII. 517a,d). 

  4. A discussão dos principais pontos de vista, designadamente, o tradicional (de R, L. Nettleship e outros), o ataque a este por J. Ferguson in Classical Quarley, 1921, e, mais recentemente o de N. R. Murphy na mesma revista, 1934, retomado no seu livro The Interpretation of Plato’s Republic, e o de J. E. Raven, também naquela publicação periódica, 1953, e depois no livro Plato’s Thought in the Making, encontra-se exposta com toda a clareza em R. C. Cross and A. D. Woozley, Plato’s Republic. A Philosophical Commentary, pp. 196-230. Sintomático da dificuldade de chegar a uma conclusão segura é, como esses professores de filosofia reconheceram, ser essa a única parte do livro em que os dois autores não estão de acordo (p. 227). 

  5. A interconexão é aceite, por exemplo, por J, E. Raven, Plato’s Thought in the Making, p. 175, que acaba mesmo por afirmar: «As três grandes alegorias de Rep. VI e VII não são três todos relacionados mas independentes, como os três quadros de um tríptico; são antes as três partes complementares e interdependentes de um só todo, como os três pés de uma trípode. Juntos constroem a base metafísica da teoria e currículo da educação superior em Platão». 

  6. O pormenor da correspondência está explicado no comentário a VI. 508e (infra, n. 38 ao Livro VI).