República X

Rocha Pereira

Excertos da Introdução de Maria Helena da Rocha Pereira, à sua tradução da “República

O Livro X tem aparecido à maioria dos comentadores como um suplemento ou um apêndice1. A discussão tinha já terminado, com o contraste entre a vida do homem justo e a do injusto, e conclusão sobre a superioridade daquela – respondendo, portanto, à asserção de Trasímaco em I. 343a-344c, 347e retomada em II. 360e-361d. Mas Sócrates reabre o diálogo, para precisar a importância das disposições sobre a poesia, que hão-de observar-se na cidade fundada (X. 595a).

Deste modo se retoma, agora em larga escala, o tema da condenação da poesia «que consiste na imitação»2, esboçado nos Livros II e III.

Podemos supor, como P. Shorey e F. M. Comford, que Platão se viu na necessidade de se defender contra a celeuma levantada pelas afirmações sobre o tema, feitas naqueles mesmos livros3. Mas a importância da poesia na vida grega justifica a expansão dada a este ataque. Embora desde os finais do séc. VI a.C. a escrita estivesse divulgada, e desde o séc. V houvesse um comércio de livros apreciável4, a verdade é que era a poesia oralmente transmitida (quer pelos rapsodos, quer pelos atores dramáticos) o principal meio de educação e veículo de conhecimentos. Esta transmissão intersubjetiva do saber é um aspecto característico e fundamental da cultura grega, bem visível, aliás, nos próprios diálogos de Platão. E não esqueçamos que, mesmo para extensas narrativas em prosa, como eram as eram as Histórias de Heródoto, não estava excluída a prática da recitação perante um grande auditório5.

Um passo de Xenofonte — posto na boca do mesmo Nicérato que já referimos atrás, por ser também uma das figuras da República — é extremamente elucidativo quanto ao valor atribuído, em especial, ao conhecimento dos Poemas Homéricos6:

Podeis ouvir de mim como haveis de vos tomardes melhores, se comigo conviverdes. Sabeis sem dúvida que Homero, o mais sábio de todos, poetou sobre quase todas as atividades humanas. Portanto, quem quiser tomar-se um bom administrador da sua casa, orador público, ou general, ou semelhante a Aquiles, Ajax, Nestor ou Ulisses, que fale comigo, porque eu sei disso tudo.

E precisamente este ponto que Platão ataca, quando, em ligação com a teoria da imitação que acaba de expor, e a conclusão a que chegara, de que ela estava três pontos afastada da realidade, imagina que se dirige a Homero e lhe pergunta7:

Meu caro Homero, se, relativamente à virtude, não estás afastado três pontos da verdade, nem és um fazedor de imagens, a quem definimos como um imitador, mas estás afastado apenas dois, e se foste capaz de conhecer quais são as atividades que tornam os homens melhores ou piores na vida particular, ou pública, diz-nos que cidade foi, graças a ti, melhor administrada, como sucedeu com a Lacedemônia, graças a Licurgo, e com muitas outras cidades, grandes e pequenas, devido a muitos outros? Que Estado te aponta como um bom legislador que veio em seu auxílio? A Itália e a Sicília indicam Carondas, e nós, Sólon. E a ti, quem?

Esta condenação da poesia já há muito que foi vista como tendo um sentido mais profundo que a simples exclusão do elemento lúdico da psicologia humana e a negação do valor paradigmático das figuras que retrata8. Assim, J. Adam reconhece que a República é «em certo sentido um requerimento para que a Filosofia tome o lugar que a Poesia até aí tinha preenchido na teoria e na prática educativa»9.

Mais recentemente, é esta também a interpretação de E. A. Havelock10, que considera mesmo que todo o diálogo é um ataque ao sistema educativo grego então em vigor, ataque esse que ao mesmo tempo constitui o melhor documento da crise da cultura grega «que viu a substituição de uma tradição oral decorada por um sistema de instrução e educação completamente diferente»11.

Tomaremos, mais adiante, à discussão desta teoria. Antes disso, porém, temos de voltar a nossa atenção para o outro tema maior deste grandioso finale: o mito de Er. Examinemos primeiro o modo de transição.

Logo a seguir ao celebérrimo passo da condenação da poesia, o próprio texto proclama as razões que teve para tanto (X. 607b):

Aqui está o que tínhamos a dizer, ao lembramos de novo a poesia, por, justificadamente, excluirmos da cidade uma arte desta espécie. Era a razão que a isso nos impelia.

A cidade ideal quer preservar a justiça a todo o custo (X. 608b):

É um grande combate, meu caro Gláucon, é grande, e mais do que parece, o que consiste em nos tomarmos bons ou maus. De modo que não devemos deixar-nos arrebatar por honrarias, riquezas, nem poder algum, nem mesmo pela poesia, descurando a justiça e as outras virtudes.

A grande virtude que se tem estado a definir proporciona altos prêmios e recompensas, de uma magnitude que ultrapassa a curta duração da vida humana. Deste modo, Sócrates introduz a doutrina da imortalidade da alma, já expressa no Fédon12, e, ao mesmo tempo, prepara-nos para uma réplica às grosseiras doutrinas de felicidade no além a que fizera respectiva alusão no Livro II (363c-e).

Francis Wolff

C) A má educação pelas artes de ilusão como causa da injustiça

  • 1 Como a representação, na arte, está ligada à realidade
    • A imitação
      • os três leitos
        • o leito pintado
        • o leito particular
        • a ideia de leito
      • seus três artesãos
        • o pintor
        • o marceneiro
        • o deus
      • A imitação distanciada da realidade dos três graus
    • A poesia, notadamente homérica, ignora aquilo de que fala
      • O poeta, e em particular Homero, não pode em nenhum caso ser o educador da humanidade
    • Pintura e poesia, artes de ilusão
      • Elas imitam não a realidade ela mesma mas sua aparência
  • 2 A poesia dramática: seu mecanismo e seus conflitos
    • Tragédia e comédia fazem apelo às emoções, deformadoras do real, não à razão, objetiva
  • 3 Terceira acusação contra a poesia
    • Efeitos perniciosos da tragédia e da comédia sobre o caráter.
    • É preciso portanto se manter em guarda contra Homero e os poetas

     

  • Conclusão geral sobre o problema da justiça
    • 1 A imortalidade da alma (608c-612a)
      • Demonstração da imortalidade da alma
        • toda coisa que possui em si um mal tende a ser destruída
        • inversamente sua excelência própria a preserva

        Se uma coisa não é destruída por seu vício de constituição interna, nada o pode

        Assim a doença acaba por destruir o corpo

        Mas posto que a injustiça – mal interno – não pode vencer a alma, nada – de externo – não o pode

        É preciso considerar que a verdadeira natureza da alma aparece quando ela está destacada do corpo e se associa então livremente a seus objetos próprios

      2 Recompensas da justiça, durante esta vida, da parte dos deuses (612a-614a)

      Recompensas da justiça após a morte: Mito de Er o Pamphyliano (mito da escolha do destino) (614a até o fim)

      • Er, morto em uma batalha, retorna à vida e relata o que viu no além. As almas, julgadas, e punidas ou recompensadas na proporção de sua conduta sobre a terra

        Estrutura do mundo

        Antes de renascer à vida mortal, as almas devem, em uma ordem fortuita, escolher o gênero de vida ao qual elas serão em seguida ligadas necessariamente: “cada um é responsável de sua escolha, o deus está fora de causa”

        Descrição da escolha das vidas pelas almas, aí incluso aquelas dos animais, em geral segundo os hábitos de sua vida anterior

        Em seguida depois de ter bebido a água da planície de Lethe para tudo esquecer elas renascem à vida

        Praticando a justiça, estaremos em paz com nós mesmo e com os deuse e seremos felizes sobre esta terra e sempre.

Eggers Lan

LIBRO X

595a La poesía imitativa alejada de la verdad

Hay muchas camas, pero una sola Idea de Cama, mirando a la cual el artesano fabrica las camas múltiples; y a su vez el pintor hace otra cama, aunque no una cama real. Hay, pues, tres camas: 1) la que existe en la naturaleza y que es creada por el ‘productor de naturalezas’ (phytourgós), o sea, Dios; 2) la que hace el artesano (demiourgós), o sea, el carpintero; 3) la que hace el pintor, que es el imitador. Y no la imita como es, sino como le parece según de dónde la mire. Lo mismo los poetas: son imitadores de imágenes de la excelencia, sin acceder a la verdad.

602c La poesía cultiva la parte inferior del alma

Una misma magnitud parece distinta según de dónde se la vea, perturbando así al alma. A esta perturbación se opone la parte racional, que es, por lo tanto, distinta y superior a la parte perturbada. En esta y otras luchas interiores del alma, la poesía colabora con la parte inferior, que es la preferida por los poetas para imitar.

608c La inmortalidad del alma

El mal de una cosa es lo que la corrompe. Pero los males del alma (la injusticia, la cobardía, etc.) no la destruyen. Nunca la perversión de una cosa destruye a otra, sino sólo la propia perversión. De modo que si los males propios del alma no la pueden destruir, menos aún podrán los males propios del cuerpo, que son ajenos al alma. Y si el alma no perece ni a causa de un mal propio ni de uno ajeno, es inmortal.

612b Las recompensas del justo

Aunque la justicia vale en sí misma y no por sus consecuencias, goza de la mejor reputación entre los dioses y hombres; pues a los dioses no se les escapa quién es justo y quién injusto. Y si el justo es amado por los dioses, le sucede lo mejor, en vida o tras la muerte. Lo mismo con los hombres: tarde o temprano reconocen la justicia del justo.

614b Mito de Er

Tras morir, las almas son juzgadas y, según eso, pasan mil años de castigo bajo tierra o, mil de deleites en el cielo. Y al prepararse para renacer, no es elegida cada alma por el demonio que guía a su destino, sino que ellas mismas escogen sus demonios. Deben elegir entre modos de vida muy distintos, y luego su demonio debe conducir su ejecución. En la elección pesan los hábitos de la vida anterior. En estos modos de vida no hay ningún rasgo del alma, porque ésta cambia según el modo de vida elegido: en eso radica su riesgo.

G.R.F.Ferrari

595a: Socrates returns to the topic of poetry, last discussed in Books 2 and 3. What is imitation? Socrates answers his question by considering the example of a couch, and distinguishing between the form of the couch, the manufactured couch, and a painting of a couch (596a). He concludes that the products of imitation are far removed from truth (597e). – 598e: Poets, like painters, are imitators. Socrates argues that if they really had the expertise conventionally attributed to them, they would not have been content to remain mere poets (599b). Their knowledge is in fact inferior to a maker’s knowledge, which is in turn inferior to a user’s knowledge (601c). – 602c: Socrates turns from the topic of what imitators know to that of how they affect their audiences. Using a comparison with optical illusions (602c), he argues that imitative poetry aims to stir the irrational element in the soul (603c). Worst of all, it can corrupt even decent people (606c). He concludes that there is no place for such poetry in Callipolis, but only for verses in praise of the gods and of good men (606e). – 608a: Via the claim that imitative poetry prevents the immortal soul from attaining its true reward, Socrates makes the transition to a proof of the soul’s immortality (608d). He insists that the soul cannot be understood in its true nature if we consider only its association with the body, as we have been doing in this discussion (611b). – 612b: Finally, Socrates describes the rewards of justice, as permitted by the rules of their discussion now that justice has first been vindicated without appeal to its reputation or rewards. He briefly reviews the rewards of justice and the penalties for injustice in this life (612d), then narrates an elaborate myth, the myth of Er, describing the rewards and penalties that await us after death (614a). The souls of the dead meet on a meadow to discuss their experiences of reward and punishment (614c); they travel to a place from which they can view the whole cosmos (616b); they choose their next lives (617d); they are reincarnated (620e). Socrates ends the discussion with a farewell (621c).


  1. Exemplo representativo dessa posição é R. L. Nettleship, que chega a encontrar vestígios de mais de uma redação do mesmo tópico (Lectures on the Republic of Plato, p. 341) e a supor que Platão teria dois planos em mente para acabar o diálogo (ibidem, p. 355). V. Goldschmidt ainda é mais incisivo, quando afirma que se, a seguir ao Livro IX, estivessem as conclusões de X. 612a seqq., ninguém suspeitaria de uma lacuna (Les Dialogues de Platon, p. 300). Mais recentemente ainda, R. C. Cross and A. D. Woozley (Plato’s Republic. A Philosophical Commentary, p. 263) observam que, apesar da sua importância, o Livro X deve ser considerado um apêndice.
    [No mesmo sentido, mas numa atitude muito crítica, se pronunciou Julia Annas, An Introduction to Plato’s Republic, cap. 14, que classifica este livro de “gratuito e confuso” e muito abaixo dos outros, quer no nível de argumentação, quer no da arte literária (p. 355). Diferentemente, N. P. White, A Companion to Plato’s Republic, p. 29, considera-o ao mesmo tempo um epílogo e uma contrapartida do Livro I, destinados a completar ideias que ficaram de lado nos Livros II a IX]. 

  2. Damos à palavra grega mimesis a sua tradução habitual. Diversos comentadores de Platão insistem em substituí-la por outra menos enganadora, como «representação» (e. g., F. M. Cornford, The Republic of Plato, p. 323; J. Ferguson, Plato: Republic Book x, p. 140), para tornar clara a participação do sujeito no acto de imitar. Sobre a dificuldade da questão e razões que aconselham, apesar de tudo, a manutenção da equivalência tradicional, vide R. C. Cross and A. D. Woozley, Plato’s Republic A Philosophical Commentary, pp. 271-272. 

  3. P. Shorey (What Plato Said, p. 248) e F. M. Comford (The Republic of Plato, p. 321). Seria, portanto, uma explicação paralela à da relação entre o Livro V e As Mulheres na Assembleia de Aristófanes, nos moldes em que alguns a imaginam (vide supra, pp. xvi-xviii e n.43,p. xvi). 

  4. As provas de um e outro facto encontram-se nos nossos Estudos de História da Cultura Clássica, I pp. 18-19. [Mesma paginação na 8.a ed., 1980.] 

  5. A tradição biográfica de Heródoto fala de um recital em Atenas e outro em Olímpia.
    Admite-se atualmente que foi a necessidade de preservar obras que, pelo seu conteúdo e forma de expressão, não tinham condições para serem aprendidas de cor – nomeadamente, os escritos dos primeiros filósofos, a partir de Anaximandro – que motivou o uso do livro na Grécia arcaica. Note-se, contudo que, como é sabido, Platão mantém o primado da oralidade sobre a escrita (Fedro 2740-2773). 

  6. Banquete IV. 6. Esta maneira de ver perdurou através da Antiguidade toda: na época romana, vamos encontrá-la em Estrabão (I. I.2) e em Pausânias (IV. 28.7-8). 

  7. X. 599d-e. Não tentaremos sequer pôr o problema da cronologia relativa das duas obras, de que, de resto, aqui só nos interessa confrontar estes passos como representativos de tendências opostas. 

  8. O passo desencadeou, como é sabido, uma longa série de defesas da poesia, de que as mais célebres são a Poética de Aristóteles e a Defence of Poetry de Shelley. 

  9. No seu comentário a 598d, vol. n, p. 396, onde cita Munk, Die naturalische Ordnung der Platonischen Schrifien, pp. 313 seqq. Tem-se notado, e procurado explicar a razão pela qual a influência que Platão atribui às artes varia tanto, de umas para outras. Assim, além da poesia, preocupa-se com o papel da música (III. 398c-401a), recordando até a frase de Dâmon, de que «nunca se abalam os géneros musicais sem abalar as mais altas leis da cidade» (IV. 424c). E, por outro lado, as artes plásticas, cujo esplendoroso desenvolvimento na Grécia não precisa de ser lembrado, são quase passadas em silêncio (uma referência à pintura em 601c seqq. e, especialmente, em 602c-d). Talvez a razão seja a que aduziu R. L. Nettleship (The Theory of Education in Plato’s Republic, p. 69): «O estado de espírito em que quadros e estátuas, e mais ainda edifícios, são mais apreciados e gozados, é mais dt receptividade aberta e inalterada do que de emoção ativa». O mesmo helenista, em Lectures on the Republic of Plato, p. 117, recorda a propósito um passo da Política de Aristóteles (1340a28 seq.) que comprova a suposição de que os Gregos consideravam relativamente pequena a influência das artes plásticas. 

  10. Preface to Plato, cap. 1, especialmente pp. 12-13. 

  11. Op. cit, p. 198. P. Friedländer (Plato, 3, p. 87) supõe mesmo que, no Livro III (392c-398b), ao atacar a poesia mimética, Platão está a sugerir «que lugar deve destinar-se, no seu Estado ideal, à sua própria obra literária – aos seus diálogos, onde narração e mimese, assim como tragédia e comédia, estão combinados e são superados pela filosofia». 

  12. Sobre as diferenças entre as provas da imortalidade da alma apresentadas no Fédon, República e Fedro (que justamente levam a supor a sua composição na ordem em que as enumeramos) e ainda noutros diálogos, veja-se, entre outros, R, Hackforth, Plato’s Phaedo, Cambridge, repr. 1972, pp. 11 e 21-22.