A visão divinatória e a memória

A visão divinatória do poeta inspirado coloca-se sob o signo da deusa Mnemosyne, Memória, mãe das Musas. Memória não confere o poder de invocar recordações individuais, de representar-se a ordem dos acontecimentos dissipados no passado. Daí ao poeta — assim como ao adivinho — o privilégio de ver a realidade imutável e permanente, põe-no em contato com o seu original, do qual o tempo, na sua marcha, só descobre uma ínfima parte aos humanos, e para a ocultar logo após. Esta função reveladora do real, atribuída a uma memória que não é, como a nossa, sobrevoo do tempo, mas evasão fora do tempo, encontramo-la transposta na anamnesis filosófica1: a reminiscência platônica permite reconhecer as verdades eternas que a alma pôde contemplar numa viagem em que ela estava liberta do corpo. Em Platão, aparece em plena luz o laço entre uma certa noção da Memória e uma nova doutrina da imortalidade que rompe decididamente com as concepções helênicas da alma, de Homero aos pensadores jônios.

Para compreender esta inovação, que dá a toda a corrente mítica da filosofia grega a sua originalidade, bastará fazer intervir, com Rohde, a influência do movimento dionisíaco da experiência que este se supõe fornecer, pelas suas práticas extáticas, de uma separação da alma do corpo e da sua união com o divino?2 O êxtase dionisíaco, delírio coletivo, brusca posse por um deus que se apodera do homem, é um estado impessoal sofrido passivamente. Muito diversa se apresenta a noção de uma alma individual, que possui em si mesma e por si mesma o poder inato de se libertar do corpo e de viajar no além3. Não é no culto de Dioniso que esta crença pode enraizar-se; encontra a sua origem nas práticas destes iatromantes que prefiguram o filósofo, e de que a lenda impõe a aproximação com a personagem e o comportamento do xamã das civilizações da Ásia do Norte4. Os Sábios são, no grupo social, individualidades à margem que singulariza uma disciplina de vida ascética: retiros no deserto ou em cavernas, vegetarismo, dieta mais ou menos total, abstinência sexual, regra de silêncio etc. A sua alma possui o extraordinário poder de abandonar o seu corpo e de o reintegrar consoante a sua vontade, após uma descida ao mundo infernal, uma peregrinação no éter, ou uma viagem através do espaço que os fez aparecer distantes do lugar onde jaziam, adormecidos em uma espécie de sono catalético. Certos pormenores acusam estes aspectos de xamanismo: a flecha de ouro, que Ábaris leva consigo por toda a parte, o tema do voo no ar, a ausência de alimentação. É neste clima religioso, muito especial, que toma corpo uma teoria da metempsicose explicitamente ligada ao ensino dos primeiros sábios. Esta doutrina prolonga a concepção arcaica, segundo a qual a vida se renova ciclicamente na morte. Mas, neste meio de magos, a velha ideia de uma circulação entre os mortos e os vivos adquire um sentido muito mais preciso. O domínio da alma que permite ao sábio, no termo de uma dura ascese, viajar no outro mundo, confere-lhe um novo tipo de imortalidade pessoal. O que faz dele um deus entre os homens, é que ele sabe, graças a uma disciplina de tensão e de concentração espirituais, de que Gernet fixou o liame com uma técnica de controle do sopro respiratório, concentrar sobre si mesma a alma ordinariamente dispersa em todos os pontos do corpo5. Concentrada assim, a alma pode destacar-se do corpo, evadir-se dos limites da vida em que ela está momentaneamente encerrada e encontrar de novo a recordação de todo o ciclo das suas encarnações passadas. Desse modo, compreende-se melhor o papel dos “exercícios de memória” cuja regra Pitágoras havia instituído na sua confraria, quando se evoca a frase de Empédocles a seu respeito: “Este homem que, pela tensão das forças do seu espírito, via facilmente cada uma das coisas que estão em dez, em vinte vidas humanas”6. Entre o domínio da alma, sua evasão fora do corpo e a ruptura do fluxo temporal pela rememoração das vidas anteriores, há uma solidariedade que define o que se pôde designar por xamanismo grego e que aparece ainda plenamente no pitagorismo antigo.


  1. L. Gernet, loc. cit., p. 7: Cornford, op. cit., pp. 45-61 e 76 sq., e supra pp. 111-112. 

  2. E. Rohde, op. cit., pp. 278-279. 

  3. A diferença é muito fortemente sublinhada por E. R. Dodds, The Greeks and the irrational, University of Califórnia Press, 1951, pp. 140 sq. 

  4. A aproximação foi indicada incidentemente por E. Rohde, op. cit., p. 283. A tese do xamanismo grego foi desenvolvida por Meuli, “Scythica”, Hermes, 1935, pp. 121-177: cf. também L. Gernet, loc. cit., p. 8; E. R. Dodds, op. cit., no capítulo intitulado: “O xamanismo grego e o puritanismo”; Cornford, op. cit., no capítulo “Shamanism”. — Cornford supõe, com N. Kershaw Chadwick (Poetry and Phophecy, Cambridge, 1942, p. 12), que a Trácia pode ter sido para a Grécia o elo que a ligou pelos seus contatos, com os germanos ao Norte, com os celtas a Oeste, ao sistema mântico aparentado ao xamanismo da Ásia do Norte. Meuli e Dodds reservam um lugar, fora da Trácia, à Cítia com a qual a colonização do litoral do mar Negro pôs os gregos em contato. Notar-se-ia a origem nórdica dos Magos, Arísteas, Ábaris, Hermotimo, e o seu contato com o mundo hiperbóreo. É verdade que Epimênides é cretense. Mas, após a sua morte, constata-se que o seu cadáver está tatuado; e a tatuagem, diz-nos Heródoto, era uma prática, usada entre a nobreza trácia (V, 6,3). Sabe-se, por outro lado, o lugar ocupado por Creta nas lendas hiperbóreas. — De nossa parte, mais do que com os fatos de xamanismo, estaríamos tentado a estabelecer uma aproximação com as técnicas de tipo ioga. 

  5. Cf. L. Gernet, op. cit., p. 8. Ernst Bickel acentuou a relação entre uma noção arcaica da alma e o sopro respiratório (Homerischer Seelenglaube, Berlim, 1925). Cf. também sobre este ponto R. B. Onians, The origins of european thought about the body, the soul, lhe world, time, and fate, Cambridge, 1951. 

  6. Cf. L. Gernet, loc. cit., p. 8.