Excertos de Rachel Gazolla de Andrade, “PLATÃO, O COSMO, O HOMEM E A CIDADE”
Platão expõe nesse diálogo mítico a formação do cosmo, iniciando sua reflexão com uma primeira divisão fundamental através da pergunta: qual é o ser que é sempre (tó ón aeí) e não nasce nunca, e qual aquele que, nascendo sempre, nunca é (28a)? A partir dessa indagação que anuncia o dualismo platônico de princípios, seguiremos passo a passo esse primeiro movimento do diálogo, uma vez que o filósofo irá apresentar dois começos na sua lógica argumentativa sobre a gênese do cosmo. O primeiro, que corresponde ao nascimento da Alma do Mundo, e o segundo que, projetado no primeiro, explica o nascimento do Corpo do Mundo pela introdução da noção de chora. Como há, necessariamente, diz ele, uma causa para o que nasce, o cosmo teria uma causa primeira tecnicamente apresentada através da figura mítica do demiurgo, artífice perfeito que, olhando para o ser que não nasce (ser eterno, inengendrado), imita-o na medida do possível. O mundo, portanto, é uma cópia do ser eterno, jamais podendo tornar-se o modelo, e sua beleza advém da ordem estabelecida através dessa ação imitadora que trabalha uma “massa desordenada”, visível e tangível (30a). A noção de “massa desordenada” é embaraçosa, e Platão, sem explicá-la, voltará a ela quando do nascimento dos corpos. Passa a narrar o nascimento da alma, tendo deixado claro que o engendrado é sempre fruto de uma techne, questão que tem consequências na sua própria visão de filosofia e do filósofo.
Nessa exposição de configuração técnica, como é constituída a alma? Se ela foi considerada, anteriormente, uma realidade imortal, autônoma, causa do movimento de todas as coisas e diretora delas, como harmonizá-la com a necessidade demiúrgica de ordenação do todo, da alma inclusive que precisará nascer de modo ordenado? O primeiro movimento do Timeu serve a Platão para que especifique o Cosmo participante do belo e do bom, porque feito à imagem daquilo que é objeto de intelecção e de reflexão (prós tó lógô kaíphronései) (29a). O filósofo estrutura os princípios para a construção da “Alma do Mundo”.
A alma constitui-se como um ser advindo da mistura das substâncias primeiras (do ser eterno e do que devem), a serem harmonizadas pelo demiurgo. Num momento posterior, quando o filósofo se vê obrigado a expor o papel da necessidade (ananke) nesse cosmo, seu logos abre-se para duas vertentes: a do inteligível e a da necessidade. Constituída a alma no primeiro momento, isto a sinaliza como um ser exterior à Necessidade. Quanto à segunda geração, é preciso seguir a reflexão platônica e aguardar o momento de esclarecê-la. Acompanhemos de perto sua exposição.
Na “fabricação” da alma, a ação demiúrgica é sua causa, o que parece contrariar sua afirmação como causa primeira das coisas geradas, exposta nas Leis, e que indica a concepção física mais ampla do filósofo. Diz ele a respeito do que nasce:
“…É preciso que o que nasce seja corpóreo (somatoeides), logo, visível e tangível…” (31b).
É claro que Platão fala, nesse trecho, da gênese dos corpos, mas o Cosmo é mais que o conjunto de corpos e guarda duas gêneses. A tradução de somatoeides como corpo será repensada no momento oportuno. Por ora, aceitemos que essa expressão seja o visível e o tangível. Todavia, sabemos que a alma não é visível nem tangível, portanto Platão não está usando a mesma ideia de geração corpórea para a gênese da alma. Anterior às coisas corpóreas e causa de seu movimento, ela é também cópia de um modelo inteligível anterior à physis enquanto totalidade de corpos sujeitos à geração e corrupção, e sua invisibilidade e intangibilidade provêm, miticamente, de um artífice divino que trabalha com invisíveis-inteligíveis (as ideias). Edificam-se três níveis ontológicos: os princípios modelares, a alma e os corpóreos. É necessário compreender suas mútuas relações, parte explicitadas no Timeu, parte nos diálogos que elegemos para esse trabalho.
No primeiro momento do Timeu, o demiurgo fez o cosmo inteligente e com alma, colocando a Inteligência na Alma e esta no Corpo, nessa sequência, portanto, não esqueçamos que os corpos ordenados e vivos que compõem o mundo são posteriores ao noûs, às ideias e à Alma. A noção de physis entendida agora na amplitude que lhe deu Platão, transcende o conjunto dos corpos ditos físicos e abarca o incorpóreo “psíquico”. Desse modo, a “massa desordenada” tangível e visível de que fala Platão nesse início, está separada da alma. Sendo principal, ele se vê obrigado a citá-la, mas só a explicará posteriormente. E sendo uma das archai do Cosmo, é anterior à alma, apesar de esta não participar daquela.
Ao discorrer sobre o nascimento da alma, Platão coloca-a num tipo de geração muito específico, a geração a partir das ousiai primordiais. A geração da alma apresenta-se enquanto vir-a-ser metafísico e não cronológico, daí o auxílio da narração mítica, pois, como ele mesmo afirma no início, há certas coisas de difícil acesso para a boa explicação em palavras.
Pela ação demiúrgica, a alma é uma mistura de duas características pertinentes aos dois seres primordiais, numa clara alusão à geração dos gene, no Sofista: o indivisível do ser que é sempre, denominado Mesmo, e o divisível do ser que sempre devem, denominado Outro. A harmonização de realidades contrárias não se faz sem esforço. O demiurgo obriga a união do Mesmo e do Outro formando uma terceira realidade, e une a esta terceira as duas primeiras, formando outra, que é a alma. Portanto, uma primeira definição da alma no Timeu, quanto aos seus princípios, é a de ser uma ousia derivada de uma mistura primordial antagônica, uma síntese de contrários, como também disse Pitágoras: M + O = M } M + O + MO = PSYCHE. O indivisível e o divisível (ou como Platão dirá no Filebo, o péras e o ápeiron) acompanharão a alma em todas as suas manifestações, em graus diversos8. Comportar-se segundo o Mesmo é para a alma aproximar-se do ser que é sempre, isto sendo expresso segundo explicita o Fedro, na potência que ela tem de pensar. Guardando, também, o divisível referido ao ser que devêm, a alma tem movimento e formas diversas que podem ter maior ou menor semelhança com a permanência do ser, que é sempre ou de seu contrário, dependendo da maior ou menor proximidade da alma com o múltiplo, ou está com o uno.
Para que a plasticidade da alma possa ser representada na sua ligação com o tangível e sensível, o demiurgo tem que unir naturezas diversas, ainda uma vez, quando da implantação da Alma do Mundo no Corpo do Mundo, isto sendo feito na medida do possível, ou seja, até onde a Necessidade puder ser dominada, afirma Platão sem ainda esclarecer tão importante noção.
Seguindo o próprio ritmo platônico, essas afirmações sobre o nascimento da alma têm consequências difíceis: se a alma é engendrada e implantada no corpóreo segundo determinação demiúrgica, há um soma primordial sem alma que ele nomeia “massa desordenada” ou Necessidade? Para responder tal questão, é preciso compreender a noção de matéria, diferenciada, a nosso ver, da noção de corpóreo, e à relação de ambos, matéria e corpóreo, com a alma.