Excertos do livro de Gaston Maire, “Platon”, trad. para português de Rui Pacheco.
A biografia de Platão defronta-se com dificuldades insuperáveis. É certo que numerosos pormenores, por vezes aparentemente muito precisos, foram transmitidos pelos primeiros discípulos, nomeadamente pelo próprio sobrinho Espeusipo e por Xenócrates, e recolhidos por Diógenes Laércio (Vida, doutrina e sentenças dos filósofos ilustres, livro III); além disso, a Carta VII, escrita por Platão na sua velhice e cuja autenticidade já não é seriamente contestada, pode ser considerada como o balanço de uma vida e susceptível, portanto, de fornecer informações preciosas… É certo que alguns dados são já bastante conhecidos; mas seria perigoso aceitar tudo sem reservas e é muitas vezes impossível de separar o que se deve considerar como verdadeiro do que depende da idealização e da lenda: sem citar já a tradição que faz do próprio Apolo o pai de Platão, que crédito se pode outorgar a essa outra tradição que fornece como data de nascimento o 7 do mês de Targélion da 88.a Olimpíada, dia do aniversário de nascimento desse mesmo Apolo no calendário religioso de Atenas? Não se pode deixar de observar que, se por vezes o fazem viver até à idade de 81 anos, este número, na aritmética mística do Pitagorismo, com que o Platonismo nascente se penetrou, é um número privilegiado, pois representa o quadrado do quadrado do primeiro ímpar, o que torna a informação singularmente suspeita. Seria pois inútil exigir-se demasiada precisão e parece preferível restringir-nos aos elementos essenciais, cuja verosimilhança parece suficiente, à falta de certeza.
Platão nasceu quer em Atenas quer em Égina, pequena ilha grega do mar Egeu, situada frente ao Pireu (antiga capital comercial do Peloponeso) e tornada possessão de Atenas, onde o pai estava então instalado como colono. Este nascimento está fixado tanto em 428 como em 427, quer dizer, no momento da morte de Péricles e no início da guerra do Peloponeso que iria, durante perto de 30 anos, opor Atenas a Esparta e assegurar a hegemonia desta última. A família pertencia à alta aristocracia ateniense: o pai Aríston, amigo de Péricles, descendia, segundo alguns, do último rei de Atenas, Codro, o que faz recuar as suas raízes lendárias até Posídon; a mãe, Perictíone, descendia de um irmão ou amigo íntimo de Sólon, prima de Crítias — um dos trinta magistrados que, durante o Verão do ano 404 a. C., assumiram o poder em Atenas, sob a pressão dos Espartanos —, e irmã de Cármides, um dos dez comissários estabelecidos no Pireu pelos oligarcas. O seu nome foi porventura o mesmo que o do avô, Arístocles, sendo Platão uma alcunha que lhe foi dada — jogando com o sentido próprio e os possíveis sentidos figurados do adjectivo platus — quer para designar o extraordinário volume da sua testa ou a largura excepcional dos ombros, que teriam impressionado o seu mestre de ginástica, o lutador argonense Aríston, quer para render homenagem à amplitude do seu estilo oratório…
A infância e a adolescência foram evidentemente as dos homens do seu nível social naquela época. Uma passagem das path:/Leis|Leis (X, 887 d-e) evoca com delicadeza a lembrança de uma infância piedosa, de orações e sacrifícios em família, de uma firme crença religiosa legada pelos pais, que o seu espírito místico, de bom grado fiel aos relatos lendários e à tradição dos mistérios, conservará sempre na memória… Muito cedo começou a receber a educação para as crianças das famílias nobres de Atenas, chamadas mais tarde a participar nos assuntos públicos. Sem qualquer dúvida, teve por mestres os mais reputados sofistas de então, que lhe ensinaram a retórica, quer dizer, a arte da argumentação e da eloquência, capaz de assegurar o triunfo nas disputas oratórias das assembleias; praticou a ginástica (um dos três estádios da educação ateniense) com o lutador Aríston, tal como o indicamos mais acima, e talvez mesmo tenha participado nos combates de luta nos jogos ístmicos. De qualquer forma, a sua intenção profunda, tal como sucedia com os seus próximos, era aceder ao exercício do poder; a Carta VII testemunha-o: «Ao tempo da minha juventude, tive a mesma ambição que muitos jovens. Prometi a mim mesmo que, desde o dia em que seria senhor dos meus atos, entraria de imediato na carreira política» (324 b). Enquanto espera, abandona-se às suas inclinações naturais: inicia-se na pintura, escreve poemas líricos, ditirâmbicos e trágicos (cf. República, livro X, 608 a). Mas afasta-se delas rapidamente, parece que para se dedicar à filosofia. Aliás, é difícil determinar a progressão e o teor da sua formação filosófica. A tradição habitualmente recebida, que se apoia numa indicação, por vezes contestada, da Metafísica de Aristóteles e nos ditos de Diógenes Laércio, faz dele, em primeiro lugar, aluno de Crátilo (enquanto outros reportarão este encontro para mais tarde). Crátilo, discípulo de Heráclito, sustenta que no Universo, estando tudo em movimento perpétuo, em mudança incessante, não existe estabilidade alguma, permanência alguma, portanto não existe saber possível relativo aos seres e às relações fixas; esta tese, recusa-la-á Platão energicamente, mas conserva-la-á mesmo assim no seu horizonte de referências. De resto, se Crátilo foi o seu mestre, se, além disso, o identificam com o personagem principal do diálogo que leva o seu nome como título, não podemos deixar de pensar que — pelo retrato que dele faz, insistindo no estreiteza de espírito e no desprezo orgulhoso face aos outros interlocutores — guardara dele uma má lembrança.