(Bornheim1967)
Se compreendermos a Filosofia em um sentido amplo — como concepção da vida e do mundo —, poderemos dizer que sempre houve Filosofia. De fato, ela responde a uma exigência da própria natureza humana; o homem, imerso no mistério do real, vive a necessidade de encontrar uma razão de ser para o mundo que o cerca e para os enigmas de sua existência. Neste sentido, todo povo, por primitivo que seja, possui uma concepção do mundo. Mas se compreendermos a Filosofia em um sentido próprio, isto é, como o resultado de uma atividade da razão humana que se defronta com a totalidade do real, torna-se impossível pretender que a Filosofia tenha estado presente em todo e qualquer tipo de cultura. O que a História nos mostra é exatamente o contrário: a Filosofia é um produto da cultura grega, devendo-se reconhecer que se trata de uma das mais importantes contribuições daquele povo antigo ao mundo ocidental.
A Filosofia teve o seu inicio nas colônias da Grécia, nos séculos VI e V a.C. Assim, a filosofia grega se desenvolve da periferia para o centro, concentrando-se em Atenas somente mais tarde, com os sofistas e os filósofos chamados socráticos. E aqui devemos acenar a um primeiro problema importante: o da origem da filosofia grega e a influência do Oriente. A florescente navegação e a rica atividade comercial das colônias jónicas da Ásia Menor punham-nas em contato com os povos do Egito, da Fenícia e da Mesopotâmia, e a influência destes povos vizinhos sobre o processo de formação da filosofia grega não pode ser ignorada
A opinião dos autores sobre este problema, sobretudo no século passado, debatia-se entre duas teses extremas: a primeira afirma que a Grécia trouxera do Oriente todos os principais conteúdos de sua cultura, e assim sendo, seria ela destituída de originalidade maior, mesmo em relação à Filosofia. E a segunda tese faz o elogio do “milagre grego”, defende a independência do gênio helénico, considerando-o uma espécie de produto exótico dentro do panorama bárbaro dos povos antigos. São teses exacerbadas, que hoje vêm sendo substituídas por uma visão mais equilibrada.
Sem dúvida, os gregos sofreram a influência de outros povos. Todo povo desenvolve certas ideias sobre a vida e o mundo, desdobra certas concepções sobre a alma, sobre a origem do mundo a partir do caos, sobre os ciclos cósmicos e a unidade do universo, etc. Estas ideias, sob a forma de mitos, estão presentes nas mais antigas religiões. Povos mais adiantados, como o do Egito e de outros países do Oriente Médio, chegaram até mesmo a desenvolver uma matemática, uma astronomia, uma medicina. Que o contato com todos estes povos não poderia deixar os gregos imunes, é óbvio. Muitos dos temas que vão ocupar os filósofos gregos estão longe de poderem ser considerados originais. Mas a despeito disto, pode-se dizer que os gregos constituem uma exceção e que nos legaram uma cultura altamente original
Esta originalidade pode ser constatada em dois pontos básicos: a) se certos elementos “bárbaros” penetraram na Grécia, isto não autoriza a inferir que todo o conteúdo do pensamento grego seja alienígena. Receberam, sem dúvida, certas ideias gerais, mais ou menos comuns de resto aos povos primitivos; dos povos mais adiantados, receberam certa ciência — mas seria absurdo pretender que se tenham limitado ao recebido de fora. Estes conteúdos todos funcionaram mais como um ponto de partida, que de forma alguma é incompatível com a rica contribuição do próprio povo grego. Se compararmos a cultura grega com as outras culturas da época, as diferenças revelam-se mais acentuadas do que o que possam ter de comum, b) Por maior que tenha sido o impacto do não-grego sobre o grego, o surto da Filosofia jamais se poderia explicar pela simples coincidência de conteúdos. O que importa. salientar é que se instaura na Grécia um tipo de comportamento humano mais acentuadamente racional. É este maior respeito à dimensão especificamente racional do homem, sem o qual é impossível pensar o surto da Filosofia, que caracteriza o povo grego. Evidentemente, neste ponto também se devem evitar categorias absolutas; não se trata de contrapor os gregos aos outros povos, como se estes fossem destituídos de racionalidade. Mas diante do real, os ‘gregos não se limitaram a uma atividade prática ou a um comportamento religioso; ao lado disso, souberam assumir um comportamento propriamente filosófico: a pergunta filosófica exige uma postura mais puramente intelectual. Sem esta maior autonomia do comportamento racional, não se poderia compreender o surto da filosofia grega. Por isto, em seu sentido forte e específico, a Filosofia ê um produto original da cultura grega. Cremos que Nietzsche resumiu o problema através de uma frase famosa: “Outros povos nos deram santos, os gregos nos deram sábios.”
Mas a instauração deste comportamento racional coloca ainda outras questões não menos complexas e difíceis de serem resolvidas. Devemos fazer também uma breve referência ao problema dos pressupostos religiosos do pensamento grego, ou ao problema das relações entre Religião e Filosofia na Grécia.
Mais uma vez, o surto da Filosofia só pode ser compreendido através de certas características muito peculiares à religião grega. Não se trata de afirmar que a Religião tenha sido a causa da instauração da Filosofia; também não se trata tão-só de reconhecer a coincidência de certos conteúdos. O problema consiste muito mais em compreender como estes conteúdos foram transferidos de um contexto mítico para o domínio da pergunta racional. Quando Tales afirma que a água é o elemento primordial de todas as coisas, há nisto uma clara ressonância do mito homérico, que mergulha por sua vez nas mais primitivas crenças religiosas. Mas tal ressonância não autoriza a dizer que a afirmação do mundo natural implica a recusa de uma realidade sobrenatural. Sem dúvida, as colônias em que se desenvolveu a filosofia pré-socrática não se caracterizavam pela intensa religiosidade da Grécia peninsular — que se extasiava, na mesma época, com a tragédia. Não é, contudo, a falta de religiosidade que explica o surto da Filosofia. Trata-se muito mais de outro tipo de religiosidade, que obrigava o homem das colônias a viver mais por si mesmo e a desenvolver uma certa ousadia intelectual. O itinerário do pensamento pré-socrático não se desdobra do “mito ao logos”, mas de um logos mítico para a conquista de um logos mais acentuadamente noético.
Por outro lado, se quisermos explicar tal ousadia devemos atentar a um rasgo fundamental da religiosidade grega: o homem grego não compreende os seus deuses como pertencentes a um mundo sobrenatural; deparamos com uma religião que desconhece o dogma ou qualquer tipo de verdade que não encontre os seus fundamentos na própria ordem natural. Os deuses gregos apresentam-se com uma evidência que os prende à ordem natural das coisas. Não existe o exclusivismo do Deus hebraico ou muçulmano, que só reconhece o homem quando este se converte. Longe de se limitarem a uma igreja ou aos privilégios de um povo escolhido, os deuses gregos são reconhecidos em sua presença puramente natural na ordem do mundo. E é esta presença natural que empresta aos deuses gregos uma universalidade ímpar. Os deuses existem assim como existem as plantas, as pedras, o amor, os homens, o riso, o choro, a justiça.
A partir de tais pressupostos religiosos compreende-se que aos poucos uma atitude filosófica diante do real se tornasse viável, que o homem passasse a afirmar-se como um ser que por suas próprias forças questiona o real. Claro que a autonomia da pergunta filosófica só pode surgir ao cabo de um longo itinerário. Se em Homero o poeta se esconde, anônimo, atrás dos feitos dos deuses e dos heróis, já Hesíodo se apresenta como homem, e quase que constrói a seu modo uma teogonia. Desta forma, a atividade racional do homem se afirma com uma intensidade crescente, até atingir, ao tempo dos pré-socráticos, o seu primeiro momento de maturidade. Burnet chama a atenção para o fato de que os primeiros filósofos usam até mesmo a palavra deus em um sentido não-religioso. Se o pensamento filosófico é em certa medida condicionado pela Religião, esta passa agora a sofrer o impacto da Filosofia.