CIÊNCIA E DIALÉTICA DO AMOR (Bréhier)

Excertos da tradução de História da Filosofia, de Émile Bréhier, por Eduardo Sucupira FIlho

À reminiscência das ideias vincula-se estreitamente, no Ménon, a possibilidade de possuir opiniões acertadas sem poder justificá-las, isto é, sem dominar o conhecimento (97 c-98 c). Assim, os célebres políticos de Atenas, Aristides ou Péricles, bons dirigentes da cidade, não possuíam qualquer conhecimento político, isto é, nenhum conhecimento metódico que merecesse o nome de arte. Não puderam, mesmo, transmiti-lo, nem fazer políticos os próprios filhos (93 c – 94 e). Praticamente, quando se tratava apenas de agir, a opinião justa equivalia ao conhecimento. Como essa opinião não é inata no indivíduo, e como não é sempre adquirida por instrução, é forçoso que ela derive da inspiração dos deuses (99 c; 100 b). Essa inspiração conta-se entre os favores concedidos pelos deuses à cidade ateniense. Trata-se de um aspecto que nenhum ouvinte de Platão poderia estranhar. Para um grego, a cidade permanece necessariamente sob a proteção dos deuses aos quais ela rende culto.

Dado que a reminiscência do Ménon se realiza no mito da preexistência da alma do Fedro, a inspiração exige, também, seu complemento mítico, que fará captar pela imaginação as influências que se exercem na alma: tal o mito de Eros, no Banquete e no Fedro. Platão vincula a inspiração filosófica a um conjunto de fatos do mesmo gênero. Essa inspiração é um aspecto da loucura amorosa, uma vez que a filosofia é para Platão o que havia sido para Sócrates; não, meditação solitária, mas geração espiritual na alma do discípulo, já que “não se engendra senão no belo” e sob a influência do amor (Banquete, 206 c). O amor tende para a imortalidade, tanto o dos corpos belos, que prolonga a vida de um indivíduo em outro, como o amor das almas belas, que desperta as forças adormecidas da inteligência, no mestre como no discípulo (206 d; 208 b). A vida do espírito está como encaixada na vida do corpo. Do desejo instintivo que impele o ser vivo a gerar seu semelhante até a visão instantânea do belo eterno e imperecível, há progresso contínuo, que é progresso em geral, um progresso que emociona, não mais pela beleza de um só corpo, mas por toda a beleza plástica. Acima da beleza plástica situa-se a das almas, a dos ofícios e ciências; mais acima, ainda, o mar imenso do Belo, do qual provieram todas as coisas belas (209 e – 212 a).

Platão insiste demoradamente sobre a natureza demoníaca do amor. A crer em suas palavras, os demônios desempenham, no culto religioso, um papel de primeira ordem: são intermediários entre os homens e os deuses; levam aos deuses as preces dos homens, e a estes as dádivas dos deuses. Eros é desses demônios, filho de Poros e Pênia, que une à pobreza da mãe a engenhosidade, os férteis recursos do espírito do pai: é o tipo e o padrão dos filósofos; simboliza tudo que existe de inspiração e de ardor; é, na ordem afetiva, o que, na ordem intelectual, são as matemáticas; atrai para o belo, como as matemáticas atraem para o ser X (202 e – 203 c).

Da mesma maneira que Eros personificado é um demônio dentre os outros, a loucura amorosa é também uma espécie de gênero mais amplo que compreende toda “loucura procedente dos deuses” (Fedro, 245 b). Platão pensa, particularmente, nas crenças e práticas religiosas que se relacionam a um tipo de adivinhação, cuja importância social era imensa: a adivinhação da Pítia deifica, “que tanto bem faz à Grécia, graças à loucura, e que ninguém faria em estado normal” (244 b). A loucura do profeta que vaticina é posta em paralelo com a loucura do poeta possuído pelas musas, cujas obras instruem as gerações futuras. A essas duas formas de delírio, de que os gregos salientam a importância, Platão compara o delírio do enamorado; e não é de menor valor, pois que é a agitação de uma alma que reconhece, nas coisas sensíveis, a imagem da beleza eterna que ela contemplou, quando vivia, antes da vida terrestre, em companhia dos deuses. É o ponto de partida da filosofia, e restitui à alma as suas asas (249 a -250 c); aguilhoa a alma, como Sócrates, o amante perfeito do Banquete (216 a), é, na Apologia (30 e), o moscardo que estimula os atenienses.

O tema de Eros e, de maneira geral, o da inspiração divina, põe a nu o fundo afetivo da ciência platônica. A filosofia não é, para Platão, o método pura e estritamente intelectual. “O órgão pelo qual se compreende é como o olho, que é incapaz de voltar-se para a luz de outra forma que com todo o corpo; igualmente, é com a alma plena que se opera a.conversão do devenir em ser… Há homens maus que são hábeis e cuja alma mesquinha possui visão aguda e penetrante…; e quanto mais têm penetração, maior é o mal que praticam!” (República 518 e sq.) Essa visão dos medíocres opõe-se à visão do Belo, que promana do amor e é o coroamento da iniciação amorosa.

Além disso, o mito liga a vida filosófica ao conjunto do destino humano, e, por isso, ao universo inteiro, que é seu teatro de ação. A queda da alma, do céu à terra, seus avatares, conversão e retorno à visão de onde partiu, eis o que constitui a essência do mito do Fedro e da alegoria da caverna, na República. A alma decaída do Fedro (246 c) assemelha-se ao prisioneiro que, colocado na caverna escura, as costas voltadas para a luz, não vê senão a sucessão, mais ou menos regular, das sombras sobre o fundo da caverna, até que a dialética interceda, num movimento de conversão, no sentido da luz (República, 514 a – 516 a).