Bréhier: DIALÉTICA PLATÔNICA

Excertos da tradução de História da Filosofia, de Émile Bréhier, por Eduardo Sucupira FIlho

O método analítico, entretanto, apresenta grave problema, pressentido no Fédon, e longamente tratado na República. Nele, com efeito, a hipótese, após ter servido à demonstração, deve ser reconduzida a uma hipótese mais elevada; mas, nessa regressão à condição anterior, é preciso deter-se num termo que lhe seja “suficiente” (Fédon, 101 d) e que deixe de ser um pressuposto (República, 511b). Ora, nesse ponto, as matemáticas nos abandonam completamente: para resolver seus problemas, elas supõem retas ou curvas, números pares ou ímpares. Mas essas suposições permanecem suposições, e delas só poderá dar explicação uma ciência superior, uma dialética que chegue ao incondicionado. Quando Platão designa esse termo, pela expressão Bem ou ideia do Bem (508 e), sua intenção é clara; quer dizer que a única explicação definitiva que se possa dar de uma coisa é que ela é boa ou participa do Bem. De acordo com os diálogos posteriores, pode-se supor que, desde a época em que escrevia a República, ele raciocinava da mesma maneira que no Timeu. No Timeu (29 e – 30 a), as relações matemáticas ou as formas geométricas que são supostas pelo astrônomo para explicar os movimentos dos astros, não são, por sua vez, explicadas, a não ser por intervenção de um demiurgo, num plano que deriva de sua bondade. A bondade é aquilo que tudo pressupõe, sem que ela pressuponha nada. Aquilo que Aristóteles chamará de causa final é a causa verdadeira e absoluta que confere explicação derradeira. Assim, as virtudes, como a justiça e a beleza, nada valem se não se sabe “porque são boas” (506 a). O Bem é como um sol, à luz do qual as outras coisas são conhecidas em sua razão de ser, e ao calor do qual existem. “O Bem não é, portanto, um ser; está além do ser em dignidade e poder” (506 b).

É possível compreender esse trecho enigmático da República sobre a ideia do Bem, se nos dermos conta do problema que se destina a resolver. No Fédon, Platão dera o nome geral de reflexão (dianoia) ao pensamento que procede da descoberta de hipóteses. Mas a condição pela qual se avança de hipótese em hipótese não constitui também uma hipótese? Não, certamente, pela relação lógica de dependência que todo o resto tem com ela, o que não a distinguiria de outra hipótese. Não se poderia reconhecê-la senão por uma intuição intelectual direta (noesis) e uma espécie de visão; não há outra maneira de justificar-se (República, 511 d).

Disso decorre o papel do filósofo, tal como é retratado no livro VII da República. Na base de sua formação intelectual encontram-se as quatro ciências que utilizam o “método por hipótese”: aritmética, geometria, astronomia, música. Platão tem o maior cuidado em indicar que não aceita essas ciências senão na medida em que utilizam esse método; e elimina tudo quanto poderia influir de observação sensível, tudo que não é demonstrativo. A aritmética, por exemplo, não é a arte de contar, que serve ao mercador ou ao estratega, mas a ciência que distingue os números em si, independentemente das coisas sensíveis (525 e); do mesmo modo, a geometria não é agrimensura (526 d), e Platão aí encontra uma prova real em uma parte nova dessa ciência (à qual não cessa de atribuir importância), a estereometria ou ciência dos sólidos regulares, que não é, de modo nenhum, uma medida de superfícies, mas intermediária entre a geometria, propriamente dita, e a astronomia (528 a). A astronomia, que não admite senão combinações de movimentos uniformes para explicar o movimento dos astros e planetas, está, portanto, longe da observação dos astros que não se mostram diretamente à visão, senão por movimentos irregulares ( 530 ad). Finalmente, o músico que tira acordes de seu instrumento, por tateios, não é o sábio que descobre as relações numéricas simples que constituem os acordes (5 31 ab). Essas quatro ciências, que nos forçam a elevar-nos a hipóteses, exclusivamente pelo pensamento, fora das coisas sensíveis, nos atraem para o ser, para as realidades verdadeiras (533 ab).

Mas tudo isso não passa de uma preparação; a essas ciências superpõe-se a dialética. O verdadeiro dialético é o espírito “sinóptico”, aquele que não considera a ciência em estado de dispersão, mas admite afinidade entre elas e com o ser (537 c). Em uma palavra, é aquele que enlaça a diversidade de hipóteses a sua raiz única, o Bem, e pela ciência do Bem, que é a maior de todas, esclarece e mostra a realidade.