DIALÉTICA SOCRÁTICA E MATEMÁTICAS (Bréhier)

Excertos da tradução de História da Filosofia, de Émile Bréhier, por Eduardo Sucupira FIlho

O que vem a ser a ciência platônica? Caracteriza-se pela união íntima entre o objeto do conhecimento e o processo metódico pelo qual é alcançado. Nela ressalta um ponto de grande importância, acerca do qual não é demais repetir. Vemos Platão partir do que, ordinariamente, se chama conceito socrático, mas a que ele chama de ideia (eidos ou idea): a coragem, a virtude, a piedade, como está explícito no Êutifron (6 d), “caráter único pelo qual toda coisa piedosa é piedosa”, e do qual nos servimos “como termo de comparação para declarar que tudo aquilo que é semelhante a ele é piedoso”. A ideia é, portanto, uma característica das próprias coisas, mas que não se pode separar senão através da análise socrática. Não estamos certos, com efeito, se a fórmula proposta pelo ouvinte exprime verdadeiramente a ideia, senão quando houver resistido a essa análise e saído triunfante da prova. Não há revelação e intuição imediatas que possam dispensá-la. Além disso, o método é mais importante que o objeto. Efetivamente, Sócrates jamais alcança a ideia, mas, em compensação, disciplina o espírito e arranca-lhe as ilusões.

A investigação socrática limitar-se-ia aos problemas morais. Admite-se, de acordo com o testemunho de Aristóteles, que Platão não fez mais do que estender o método a ideias que não se situavam na esfera da ação, e que ele “separa” essas ideias, isto é, confere-lhes uma realidade diferente. Mas de que forma se promove essa transformação? Manifesta ela esse caráter puramente arbitrário que lhe empresta Aristóteles? Nada disso: a separação das ideias, que as transforma em realidades superiores às coisas sensíveis, parece coincidir com o lugar que Platão dá às matemáticas.

As matemáticas, para empregar-se um método rigoroso, ao contrário do socratismo, conduzem a conclusões positivas. Como e por quê? Graças a um processo que Platão chama de hipótese e define claramente no Ménon (87 a): “Quando se pergunta ao geômetra, a propósito de uma superfície, o triângulo, por exemplo, se este pode inscrever-se num círculo, ele responderá: ‘Não sei, ainda, se essa superfície o permite; mas creio oportuno, para determiná-lo, raciocinar, por hipótese, da seguinte maneira: se essa superfície é tal que o paralelogramo da mesma superfície aplicado a uma reta dada preenche a superfície investigada, o resultado será este: se não, será aquele. “Esse método de análise, que consiste em remontar do condicionado à condição, visando antes a estabelecer consequência lógica entre duas proposições, deixa de lado, provisoriamente, a questão de saber se a própria condição é realizada. Essa condição poderá ser objeto de investigação análoga e tornar-se ela mesma dependente de outra condição pressuposta.

À discussão socrática substitui-se, pois, no Ménon, a análise matemática. Ora, a existência e a separação das ideias são-nos apresentado no Fédon com perfeita clareza, como resultado da aplicação do método analítico ao problema da explicação das coisas, tais como é apresentado pela física. Platão relata que ao constatar que os físicos não podiam chegar à explicação dos fatos mais simples, fora Sócrates seduzido por um livro de Anaxágoras, onde se lia que “a inteligência era a ordenadora e a causa de todas as coisas” (97 c); mas, ao adiantar-se na leitura, percebera que, na explicação do detalhe dos fenômenos, a forma da terra ou o movimento dos astros, por exemplo, a inteligência nunca intervinha, e Anaxágoras recorria ao ar, ao éter ou a água. Ele explicaria que Sócrates permanece prisioneiro, não porque se recusara a fugir, mas porque seu organismo possuía tal ou qual propriedade. É então que Sócrates se decide, a fim de resolver os problemas físicos, a deixar inteiramente de lado as realidades sensíveis proporcionadas pela visão ou por outras sensações, e intentar uma “segunda incursão”, utilizando o método já indicado no Ménon, ou seja, “apresentar por hipótese a fórmula que eu julgasse ser a mais sólida, depois de propor como verdadeiro o que estivesse de acordo com essa fórmula, e como não verdadeiro o que não estivesse de acordo com ela”. No problema da explicação das coisas, essa fórmula é a que afirma as ideias; “supor-se-á que existe o belo em si, o bem em si, o grande em si, e assim por diante”; e se uma coisa é bela, sem ser o belo em si, a explicação será que ela “participa” do belo em si. A intenção de Platão torna-se mais clara quando compara seu modo de explicação ao dos físicos. Assim, à explicação de como duas coisas formam um par, o físico diz-nos que duas coisas, primitivamente separadas, se reuniram ou que uma mesma coisa se dividiu em duas. Dá-nos, portanto, duas explicações contraditórias do mesmo fato, ou melhor, não o explica. Nenhuma operação física ,pode explicar a gênese da díade, porque a díade existe em si, independentemente de todas as operações físicas, como objeto da matemática. É pela participação nessa díade em si que nasce o par de duas coisas (Fédon, 99 c – 100 d: cf. 101 e).

Vê-se como a teoria das ideias está ligada ao método analítico ou ao método da hipótese. O método é bem mais amplo e importante que a teoria das ideias, que nada mais é do que uma explicação particular dele. Eis aqui todo o espírito do platonismo, ao qual se oporão tão abertamente os dogmatismos que virão a seguir. O impulso do pensamento permanece, para Platão, como para Sócrates, mais importante que o êxito.