2. A queda. — É muito difícil saber qual é a natureza da alma, mas podemos, diz Platão (Fedro, 246 a), dar dela uma imagem. As almas são um carro celeste em que um cocheiro comanda os cavalos. Os cavalos das almas divinas são cavalos robustos e obedientes; o carro alado das almas humanas é feito de dois cavalos, um que é bom e obediente, o outro rebelde; por isso, conduzir um tal carro é uma coisa difícil. As almas imortais seguem o cortejo de Zeus e contemplam as «realidades que estão fora do céu», é aí que se encontra o patrimônio do verdadeiro saber; «daí que o pensamento de um deus, visto que se alimenta de intelecção e de saber sem misturas, e, do mesmo modo, o pensamento de qualquer alma que cuida de receber o alimento que lhe convém, quando com o tempo acaba por perceber a realidade, ressente por isso bem-estar, e a contemplação das realidades verdadeiras é para ele uma fonte benfeitora, até ao momento em que a revolução circular a devolve ao mesmo ponto. Ora, enquanto realiza essa volta, tem à frente dos olhos a Justiça em si mesma, nos olhos da Sabedoria; tem à frente dos olhos um saber que não é aquele ao qual está ligado o devir, que também não é aquele que se diversifica com a diversidade dos objetos aos quais se aplica e aos quais, na nossa existência presente, damos o nome de seres, mas o Saber, que se aplica ao que realmente é uma realidade» (247 de).
As outras almas esforçam-se por seguir as almas dos deuses no seu cortejo, mas esbarram umas nas outras, os cavalos atrapalham-nas e obedecem com dificuldade, de maneira que, apanhadas num imenso remoinho, são vencidas pela fadiga e afastam-se sem terem sido iniciadas na contemplação da realidade; então é a Opinião o seu único alimento (248 b). Quando as almas que não conseguiram ver as realidades verdadeiras se tornam pesadas, perdem as asas e caem na terra no corpo de um homem.
Percebemos agora o sentido da teoria do conhecimento, da qual este mito é a ilustração na medida em que está ligado à teoria das ideias e à maiêutica socrática: «Uma inteligência de homem deve exercer-se segundo aquilo que chamamos Ideia, indo de uma multiplicidade de sensações para uma unidade, cuja reunião é um ato de reflexão. Ora esse ato consiste numa recordação dos objetos que outrora a nossa alma viu, quando se associava ao passeio de um deus, quando olhava de cima tudo aquilo a que na nossa existência presente atribuímos a realidade, e que erguia a cabeça para aquilo que é realmente real» (249 bc). Assim se define o alcance dos mitos platônicos acerca da alma, que possuem não só uma significação antropológica, escatológica e ética, como uma significação gnoseológica que vem integrar-se numa metafísica, senão mesmo numa teologia.