Caeiro (Arete:§66) – A determinação do trabalho (ergon) específico do humano

A situação (praxis) designa o horizonte onde pode eclodir a excelência (arete). Estar lançado para a felicidade (eudaimonia) é uma característica formal da vida humana. É por termos um conhecimento deste projecto que nos está dado em mãos que percebemos estarmos afastados dele ou irmos no seu encalço. Se «ser feliz» é o projecto fundamental da vida humana, que tipo de actividade é específica e autenticamente a que diz respeito ao ser humano? Se o bem é um acontecimento que reside no desempenho de uma determinada actividade ou função, como é que se pode saber do sentido dessa função específica? Qual é o trabalho (ergon) do homem? O trabalho (ergon) especificamente humano não pode resultar aparentemente da capacidade técnica do homem, enquanto capaz de ser produtor de um determinado bem, mas de uma outra forma de produção que lhe diz intimamente respeito.

O que um técnico especializado, como o tocador de flauta ou o escultor, produz é completamente diferente do trabalho manual do carpinteiro e do sapateiro. Os dois primeiros são artistas (technitoi). Os dois últimos são artesãos (demiourgoi). O trabalho que produzem não é nenhuma obra de arte, mas serve para um determinado uso. A mobília para ter em casa, o sapato para calçar. Os primeiros não produzem nada para ser usado e estão, por isso, possivelmente, na sua actividade mais próximos da felicidade (eudaimonia) do que os segundos. Corresponderá a felicidade a um «não fazer nada» (argon)? Será que o tipo de produto que produz é da mesma natureza daquela que produzem os olhos e a mão e o pé, e tudo em geral, cujas partes executam uma determinada função?

Quando se pergunta, por outro lado, pela actividade específica (ergon) que executam alguns órgãos do corpo humano como os olhos, a mão e o pé, percebemos que a actividade dispõe deles ou não. Os órgãos estão postos ao serviço dessa determinada actividade, a qual, porém, não lhes é redutível. A visão não está nos olhos. O manuseamento não está nas mãos, nem o andar está nos pés. O sentido que os determina ultrapassa estas partes do corpo humano. Se se trata de um trabalho, para além de todas aquelas funções, como podemos tê-lo em vista? Qual poderá ser o seu sentido?

O horizonte para o qual a pergunta aponta não pode ser exclusivamente o que vai no sentido de perceber os «produtos» de determinadas actividades como a «arte» e o «trabalho manual» ou o «funcionamento do corpo humano», mas ultrapassa todos estes domínios. Constitui-se em alteridade relativamente a todas estas possibilidades. Esse horizonte geral é «o viver» (tò zen). É aí que se pode procurar pela especificidade peculiar que determina a vida humana.

CAEIRO, A. A Areté como possibilidade extrema do humano. Lisboa: INCM, 2002.