Caeiro (Arete:63-66) – mimesis

A análise platônica do fenômeno da imitação reprodutora (mimesis) aponta para o facto absolutamente espantoso de a sua ação não se circunscrever só aos mais diversos campos da reprodução artística, mas extravasar para fora do domínio da realidade no seu todo. Ou seja, a actividade artística de um pintor exacerba esta nossa instalação do olhar. Ao retratar as diversas aparições nas quais uma determinada coisa nos surge, um pintor não faz mais do

que reproduzir o que já na óptica natural acontece. Também nós só vemos aparições de coisas, embora achemos que estamos habitualmente confrontados com a própria coisa em si mesma. O que passa, então, a declarar-se pela análise do fenômeno da imitação reprodutora (mimesis) é que o seu campo de ação não é o âmbito restrito da actividade artística mas que é o facto de a nossa vida assentar sobre uma perspectiva de imitação (mimesis). A partir do confronto com esta descoberta percebemos que não produzimos qualquer acompanhamento do sentido da natureza essencial (physis) de cada coisa .

A análise inicial do fenômeno da reprodução (mimesis) é feita a partir da tematização da essência de cada coisa na sua individualidade , da natureza essencial (physis) de cada coisa, mas circunscrita ao âmbito daquilo a que modernamente chamamos a realidade externa e objectiva. O horizonte tematizado deixara fora de jogo a procura do modo como cada coisa em geral e o humano em particular podem ser «excelentes». A pergunta sobre um tal sentido ultrapassa os requisitos mínimos indispensáveis à identificação da natureza de qualquer coisa e tem de ter em vista os limites organização-ordenação (taxiskosmos) versus desorganização-desordenação (ataxia-akosmia) dos quais depende o apuramento da excelência (arete) ou da perversão (kakia) de um determinado ente.

Se já no nível elementar da pergunta pela natureza essencial (physis) dos entes há uma enorme dificuldade em anular a dependência da nossa perspectiva de um fenômeno de reprodução (mimesis), muito mais difícil é responder à pergunta sobre sentido da excelência (arete) , uma vez que o horizonte em que ela se configura é definido a partir de limites completamente diferentes. O horizonte em que se pode perguntar pela excelência (arete) humana é o da situação em que o humano existe no seu modo de ser (praxis) . A possibilidade de análise deste horizonte depende da tematização de uma estrutura fenoménica diferente daquela que está presente na análise das coisas do mundo natural.

O tema da nossa investigação está, por conseguinte, ainda por abrir. O fenômeno da reprodução (mimesis) tem de ser tomado em consideração quando passa a incidir sobre a excelência de cada coisa (arete ekastou), em geral, e sobre a excelência humana (anthropeia arete) em especial. Para aceder a esta relação problemática entre a reprodução (mimesis) e a excelência (arete), temos de tomar em consideração determinados fenômenos que não são levados em linha de conta na análise da realidade do mundo, da natureza essencial (physis) do mundo .

A excelência (arete) é o que «organiza e ordena» cada coisa, isto é, o que permite desenvolver, máxima e optimamente, as potencialidades específicas de cada coisa. Ao fazer-se a pergunta sobre a excelência (arete) humana no horizonte da situação especificamente humana (praxis), temos em conta o facto de nos movimentarmos na compreensão implícita de que é pela tematização do modo como nas mais diversas situações age o humano que podemos chegar à resposta pela pergunta sobre como é que elas podem ser «organizadas e ordenadas» de uma forma excelente. Este horizonte prático a ser tematizado tem de ser sistematicamente contraposto ao horizonte «natural». A excelência (arete) não corresponde só à realização de uma possibilidade natural, ao tornar em realidade as potencialidades de que cada um dos humanos naturalmente dispõe, mas antes corresponde à eclosão de uma possibilidade que não está ao nosso dispor, não sendo, por assim dizer, de modo nenhum natural.

De que forma, então, se pode produzir uma abertura para o horizonte em que a excelência (arete) tem lugar? Um sentido que provoca uma alteração no modo como se «experimenta» a «essência» (eidos) «neutral» de cada coisa, que procura determinar em cada região de entes qual é de cada vez a estrutura organizativa (taxis), que «arranja e ordena». Este horizonte em que se abre a dimensão que tem como limites a «excelência» e a sua «impossibilitação» (kakia) ultrapassa aquele em que eclode a natureza essencial (physis) de cada coisa, o modo como experimentamos cada uma das coisas na sua multiplicidade no seu aspecto fundamental (eidos) neutral. A possibilidade de nos comportarmos de uma forma excelente na situação humana (praxis) só é possível ao humano. A situação humana (praxis) é a expressão para o horizonte específico da vida humana, porquanto só o homem se pode relacionar com as situações e com as circunstâncias em que elas eclodem, e assim pode agir. Alterar as condições de base de que dispõe, criar soluções para situações aparentemente sem saída e não sucumbir à sua natureza são fenômenos limite que acontecem na dimensão da situação humana (praxis) e que determinam uma excelência.