Podemos encontrar uma caracterização desta investigação no Fédon. Procura-se, aí, pôr a descoberto a «causa fundamentalmente responsável» (aitia) por cada coisa, tanto no plano físico como no plano prático . Em vista tem-se o apuramento do sentido que articula as mais diversas situações pelas quais o humano pode passar (praxis). Isto é, um saber daquilo através do qual qualquer coisa passa a ser, deixa de ser ou é . Este plano fundador do sentido dos horizontes físico e prático dá uma resposta à pergunta «através do que é que?» (dia ti) qualquer coisa vem ser, se mantém numa subsistência sua e deixa de ser? E um plano que se constitui na diferença relativamente ao plano em que se encontram as coisas.
Há um princípio organizador de todas as coisas e responsável por todas elas: um plano de compreensão e sentido . Se for o sentido compreensivo (noûs) o sentido que articula todas as coisas, é ele que as organiza e estabelece, por forma a que cada uma delas seja da melhor maneira possível . Para se descobrir a causa responsável por cada coisa, tem de se descobrir o que é o melhor para cada coisa , isto é, qual é a melhor forma de ser, qual a melhor forma de qualquer coisa ser afectada ou de fazer algo. O que convém ter em vista (skopein), por um lado, é o mais excelente e o melhor de tudo e, por outro, saber daquilo que é o pior, porquanto há uma mesma articulação do sentido que permite ver os dois extremos que unifica.
Explicar qualquer coisa significa, por conseguinte, explicitar a sua causa responsável e a sua necessidade , dizendo o que é melhor e por que é melhor para ela que seja da maneira que é . Só preenchendo esses requisitos se chega a um ponto arquetípico que dá por terminado o inquérito aberto e em que já não se precisa de continuar a formular mais nenhuma espécie de interrogação sobre a causa responsável por um determinado acontecimento. A possibilidade de dizer o que é «o melhor para cada coisa» e, assim, de «explicitar o bem» depende do sucesso da operação de distinção do plano das coisas relativamente ao seu plano fundacional. Ou seja, não se consegue explicar uma coisa através de outra coisa. É necessário ter em vista o aspecto essencial da causa responsável (eidos aitias) por cada coisa .
O mesmo se passa quando, ao pretender tematizar a causa responsável (aitia) do horizonte da situação (praxis) humana, se procurasse ter em vista o plano de sentido que dá luz a toda e qualquer situação por que alguém passa, tentando fazer uso do sentido compreensivo (noûs) , e fizesse, depois, uma mera descrição objectiva daquilo que está a acontecer a alguém, como se essa mera descrição por mais pormenorizada que fosse levasse à determinação do que situa alguém numa determinada situação (praxis). Desta forma, dá-se uma confusão de planos. Ao procurar explicitar uma determinada situação, descreve-se o seu resultado como se por esse escrutínio se tivesse acesso ao plano em que eclodem as causas responsáveis (aitiai) de cada situação por que se passa .
Se esta descrição meramente objectiva explicasse a razão fundamental pela qual se dá um determinado facto, também se poderia compreender a situação de Sócrates pela descrição pormenorizada daquilo que ele faz. Ou seja, seria como se o facto de ele estar aqui e agora sentado , a falar com os seus amigos, encontrasse a sua explicação na mera descrição objectiva do facto que está a acontecer. Se assim for, para pôr a descoberto o através do quê e porquê (dia ti) de um determinado estado de coisas ou de uma determinada situação, bastava apurar que o seu corpo é composto de ossos e de tendões, que, por um lado, os ossos são rijos e há articulações entre eles a mantê-los afastados uns dos outros, que, por outro lado, os tendões se encontram aptos à contração e à descontração, que os ossos estão cobertos a toda à volta por carne e por pele que os mantêm juntos; que, sendo os ossos elevados nas suas articulações, os tendões, ao contraírem-se e ao relaxarem-se, fazem que Sócrates possa agora dobrar as suas pernas, e, por esta razão, está ali sentado com o corpo dobrado . A causa responsável por Sócrates estar sentado aqui é, em última análise, dada pela capacidade anatômica que o seu corpo detém para se poder dobrar e, assim, sentar-se. Sócrates está aqui e agora sentado porque é da disposição natural (physis) do seu corpo pequeno (soma) poder sentar-se.
O mesmo se passa quando se pretende enunciar as causas responsáveis que tornam compreensível a situação em que Sócrates se encontra, de estar à conversa com os seus amigos, chamando à responsabilidade as suas vozes, o ar, as percepções acústicas e miríades de outras coisas deste gênero, sem mencionar as verdadeiras causas . «Conversar» assim explicitado é compreendido como uma situação que tem na sua base apenas os fenômenos físicos que estão a ter lugar e permitem que se desenrole uma conversa. Como se, em última análise, uma conversa fosse a soma de percepções acústicas com os sons emitidos pela atmosfera.
Ao circunscrevermos a explicação de uma determinada situação à descrição pormenorizada do que é fenomenalmente visível, mesmo percebendo que estes fenômenos são possibilidades consignadas pelo horizonte do corpo humano, nós percebemos a forma circunstancial, artificial e absurda de darmos sentido ao que está a acontecer. A estratégia metodológica de abafamento do plano de sentido conduz paradoxalmente à sua notificação. A provocação da presentificação do plano etiológico dá-se pelo esforço constante de reconduzir tudo o que se dá a um plano coisal. Só assim se criam as condições de possibilidade de lançar o olhar para a dimensão em que verdadeiramente se atinge a causa fundamentalmente responsável por uma determinada situação que se verifica de facto.
O fundamento para uma determinada situação é a compreensão do sentido que a articula. Um fenômeno de sentido não pode ser nunca reduzido a uma forma de objectivificação. Não pode ser reificado. Essa compreensão é dada por um acesso noético, por uma compreensão de sentido compreensivo (noûs), e não por um recenseamento que faz o escrutínio de tudo o que de facto está já constituído.
A causa fundamental, responsável pelo sentido de tudo quanto se verifica no plano da situação humana (praxis), é constituída num plano completamente outro em relação àquele em que os fenômenos se encontram objectivamente «aí». O facto de Sócrates estar sentado ali a conversar com os seus amigos, ali na prisão, à espera da hora da sua morte, tem um outro sentido que é irrecuperável pela simples enunciação desses factos: «Sócrates está ali naquele momento sentado à conversa com os seus amigos.» O sentido que pode dar inteligibilidade a esse facto só pode ser dado pela abertura a uma dimensão diferente da meramente objectiva a partir da qual descrevemos o que vemos. Essa outra dimensão é tanto mais fugaz e irrecuperável, quanto mais persistimos em tocar-lhe e agarrá-la com descrições pormenorizadas daquilo que se está a ver, mesmo quando supostamente localizamos a procura do «sentido» no «lado oculto das coisas», como quando referimos «ossos», «tendões», «articulações», «carne», «pele», «corpo», «estar dobrado», ou «vozes», «sons», «percepções acústicas», etc.
«Estar sentado num determinado lugar à conversa com amigos» pode ser a expressão de um facto que se dá com cada um de nós ao longo da nossa existência. Na praia, durante os meses de Verão; na sala de aula, durante o Inverno; em casa, à hora do jantar. Em cada um desses enunciados pode descrever-se objectivamente o mesmo. «Estar sentado num determinado lugar à conversa com amigos» corresponde a um sentido comum a todas as situações consideradas. O sentido autêntico de cada uma delas é, porém, completamente diferente de umas para as outras e a fortiori é-o quando se espera pela hora da morte.
Nenhuma descrição objectiva de um estado de facto pode, porém, fundamentar e articular uma determinada situação no horizonte especificamente humano (praxis). A causa responsável (aitia) tem de apontar para uma determinação de sentido, ou seja, uma determinação que não seja do mesmo tipo dos entes que procura explicar . A situação em que Sócrates se encontra resulta antes do facto de ter parecido melhor aos atenienses que ele fosse condenado. E se Sócrates não pensasse que era mais justo e mais belo submeter-se ao castigo que a cidade lhe infligiu em vez de fugir e de escapar , não ficaria em Atenas para morrer .