Caeiro (Arete:81-84) – pragmata

[…] de que modo é possível ter acesso à verdade e não ao simulacro da excelência (arete)? Qual é o aspecto essencial (eidos) da excelência (arete)? De que forma temos ou não um autêntico acesso ao seu sentido? De que forma as produções artísticas que imitam as situações humanas são «outras» e «derivadas»? Se se mantiverem os diferentes níveis de acesso à realidade exterior, a que é que corresponde o ponto de vista do poeta trágico? Será só um ponto de vista sub spede aeterna a ter acesso ao aspecto essencial (eidos), à unidade de sentido que permite articular uma determinada situação (praxis)? E que a ação dos homens imersos de cada vez nas mais variadas situações resulta de um olhar derivado para esse aspecto (eidos) que daria sentido a uma situação (praxis)! Uma situação (praxis) humana que por sua vez é imitada por um poeta imitador da vida!

Mantendo os níveis de «abertura» identificados, podemos perceber que é possível imitar o que quer que seja sem ter a mínima noção da excelência (arete) de cada coisa em geral e, portanto, também sem ter a mínima noção daquilo que se passa a respeito das situações (pragmata) humanas. Não há, por conseguinte, nenhuma impossibilidade de produzir uma «imitação», mesmo nada se sabendo acerca de cada coisa se presta ou não . O imitador nada sabe que seja digno de menção sobre aquelas coisas que imita . A reprodução imitadora (mimesis) é uma brincadeira, nunca uma coisa séria .

A dificuldade em avaliar tudo isto e, assim, sofrer a consequência da ação da reprodução (mimesis) é devida à «afectabilidade da nossa natureza» . que em nós domina é a aparição que nos afecta e não aquilo que de facto acontece, o que seria o resultado de um verdadeiro «cálculo» . Só assim poderíamos estar «já a ver que ia acontecer» . Podemos ter uma compreensão deste domínio da aparição (phainomenon) em nós, quando atendemos ao seguinte : que uma determinada coisa vista de longe não «parece» ter o mesmo tamanho, dada a aparição distanciada que ela tem quando é vista de perto , ou que a forma da aparição das coisas dentro de água e fora dela é diferente para quem as está a ver, uma vez que lhes surgem ora curvadas ora direitas, devido ao erro da visão . Estes sucessos são «sintomas» de que há uma perturbação , uma afectação inerente à lucidez humana , não nos permitindo ter um verdadeiro acesso ao que de facto está a acontecer. A possibilidade de destruir esta «afectação da natureza que é a nossa» e de prestar socorros extraordinários só é dada pelo cálculo do que nos irá acontecer (logisamenon). Aquilo a que assim se tem acesso resulta não já de uma afectação (pathos) da nossa natureza, mas de uma verdadeira ação (ergon) da nossa lucidez .

Assim, também no horizonte das situações (pragmata) humanas está em causa a anulação do vigor com que as afectações nos afectam e a constituição de um verdadeiro acesso aos fenômenos que ocorrem nessa dimensão. Também aqui, é possível estabelecer uma diferença entre o modo como as coisas nos surgem, afectando-nos, e um outro modo de nos reportarmos a elas, que se dá não só por reação ao que acontece, mas resultante de um esforço compreensivo que procura uma explicação para o que sucede. Um outro modo, porém, fundado no sentido (logos) e não já numa afectação (pathos). Só nessa conformidade subsistirá a possibilidade de se vir a saber o que nos afecta .

CAEIRO, A. A Areté como possibilidade extrema do humano. Lisboa: INCM, 2002.