Corça do Monte Cerineu

Mitologia Grega – Hércules – Doze Trabalhos – Corça do Monte Cerineu

Junito Brandão

Píndaro apresenta uma versão acentuadamente mística dessa longa perseguição. Consoante o poeta tebano, Olímpicas, 3,29sqq., Héracles teria seguido a corça em direção ao norte, através da Ístria, chegando ao país dos Hiperbóreos, onde, na Ilha dos Bem-Aventurados, foi benevolamente acolhido por Ártemis.

A interpretação pindárica é como que uma antecipação da única tarefa realmente importante do herói, sua liberação interior. Sua estupenda vitória, após um ano de tenaz perseguição, apossando-se da corça de cornos de ouro e pés de bronze, tendo chegado ao norte e ao céu eternamente azul dos Hiperbóreos, configura a busca da sabedoria, tão difícil de se conseguir. A simbólica dos pés de bronze há que ser interpretada a partir do próprio metal. Enquanto sagrado, o bronze isola o animal do mundo profano, mas, enquanto pesado, o escraviza à terra.

Têm-se aí os dois aspectos fundamentais da interpretação: o diurno e o noturno dessa corça. Seu lado puro e virginal é bem acentuado, mas o “peso do metal” poderá pervertê-la, fazendo-a apegar-se a desejos grosseiros, que lhe impedem qualquer voo mais alto.

De outro lado, embora consagrada a Ártemis, a corça, no mito grego, é propriedade de Hera, deusa protetora do amor legítimo e do himeneu. Símbolo essencialmente feminino, o brilho de seus olhos é, muitas vezes, cotejado com a limpidez do olhar de uma jovem. O Cântico dos Cânticos usa o nome da corça numa fórmula de esconjuro, para preservar a tranquilidade do amor:

“Eu vos conjuro, filhas de Jerusalém, pelas gazelas e corças do campo, que não perturbeis nem acordeis a minha amada, até que ela queira (2,7)”.

Mário Meunier

Euristeu ordenou, em seguida, a Hércules, trazer-lhe viva a corça do Monte Cerineu. Essa maravilhosa corça, consagrada a Ártemis, possuía cornos de ouro e pés de bronze. Infatigável na corrida, jamais alguém havia podido alcançá-la. Por isso, quando Hércules se pôs em sua perseguição, a caça que lhe moveu não durou menos de um ano. Arrastando com ela seu caçador, a corça correu de um jato até as regiões dos Hiperbóreos. Ali, o animal, fatigado, deu meia volta e refez, em sentido inverso, o trajeto que já havia percorrido. Num momento da corrida, como a corça hesitasse em atravessar um rio que as chuvas haviam engrossado, Hércules ganhou terreno, caiu sobre ela, agarrou-a pelos cornos, carregou-a viva nos largos ombros, indo entregá-la às mãos de Euristeu.

Robert Graves

O Terceiro Trabalho de Hércules consistiu em capturar a corça de Cerínia e levá-la viva de Énoe até Micenas. Esse veloz animal rajado tinha cascos de bronze e chifres de ouro como os de um cervo, motivo pelo qual algumas tradições afirmam tratar-se, na realidade, de um cervo. Ela era consagrada a Ártemis, que, em criança, viu cinco corças, maiores que touros, pastando nas margens cobertas de seixos negros do rio tessálio Anauro, no sopé dos montes Parrasinos, enquanto o sol cintilava em seus chifres. Ela correu e conseguiu agarrar quatro delas, uma após outra, com as próprias mãos, e as atrelou a seu carro; a quinta fugiu pelo rio Celadão para a colina de Cerínia, tal como havia previsto Hera, que já pensava então nos Trabalhos de Hércules. Segundo uma outra versão, essa corça era um monstro indômito que costumava arrasar as lavouras e que Hércules, após uma árdua luta, sacrificou a Ártemis no cume do monte Artemísio.

b. Pouco disposto a matar ou ferir a corça, Hércules realizou esse Trabalho sem despender a menor força. Ele a perseguiu incansavelmente durante um ano inteiro, numa caçada que o levou até Hístria, no país dos hiperbóreos. Quando, finalmente esgotada, a corça se refugiou no monte Artemísio, e dali desceu até o rio Ladão, Hércules disparou uma flecha com a qual prendeu suas patas dianteiras, perfurando-a entre o osso e o tendão sem derramar sangue. Depois ele a recolheu e carregou nos ombros até Micenas, atravessando a Arcádia. Dizem, porém, que ele teria usado redes; ou que seguiu o rastro da corça até encontrá-la dormindo debaixo de uma árvore. Ártemis saiu ao encontro de Hércules e o repreendeu por ter maltratado o seu animal sagrado, mas ele alegou que o havia feito por pura necessidade, e fez recair toda a culpa sobre Euristeu. Assim, ele aplacou a ira da deusa, que lhe permitiu levar a corça viva para Micenas.

c. Uma outra versão deste Trabalho reza que a corça era aquela que a plêiade Taígete, irmã de Alcíone, havia dedicado a Ártemis em agradecimento por havê-la transformado temporariamente em corça, permitindo-lhe, assim, eludir os abraços de Zeus. Não era fácil, contudo, enganar Zeus por muito tempo, e, no final das contas, ele gerou com ela Lacedêmon, após o que ela se enforcou no cume do monte Amiclas, que desde então passou a se chamar monte Taígeto. A sobrinha homônima de Taígete casou-se com Lacedêmon e com ele teve um filho, Hímero, que Afrodite fez com que deflorasse involuntariamente sua irmã Cleódice, numa noite de diversão promíscua. No dia seguinte, ao dar-se conta do que havia feito, Hímero se atirou ao rio — agora conhecido às vezes pelo seu nome — e nunca mais voltou a ser visto. Mas o rio é geralmente chamado de Eurotas, pois o predecessor de Lacedêmon, o rei Eurotas, tendo sofrido uma ignominiosa derrota por parte dos atenienses — em virtude de não ter querido esperar a Lua cheia para travar a batalha —, afogou-se em suas águas. Eurotas, filho de Miles, o inventor dos moinhos de água, era pai de Amiclas e avô de Jacinto e Eurídice, que se casou com Acrísio.